Joseph Ki-Zerbo e Leopoldo Amado, 2003 - Praça de São Pedro - Santa Sé
Morreu Joseph Ki-Zerbo, inquestionavelmente, uma grande perda para o continente africano. Do meu lado – e creio que da maior parte dos estudiosos de África –, Ki-Zerbo era uma figura respeitada e respeitável, não somente pelo seu invejável percurso profissional e político, mas igualmente pela sua personalidade humilde e a sua permanente postura de combate: combates pela História de África; combates pela dignificação do mister político; combates pela melhoria do nível de vida das populações africanas; combates pela utilização racional e sustentado dos recursos naturais e, ultimamente – como pude pessoalmente constatar –, combates por uma ordem nova que permitiria que África acertasse o passo com a evolução da humanidade.
Porém, quis o acaso e a sorte que eu tivesse tido o privilégio de conhecer este homem em circunstâncias muito particulares. Com efeito, quando concluímos o livro “O Meu Testemunho, Guiné-Bissau e Cabo Verde – Uma Luta, um Partido, Dois Países, Editorial Noticias,
Assim, por intermédio do deligente Pedro Godinho Gomes, que se encontrava na altura em Burkina Faso, estabelecemos imediatamente contacto com Ki-Zerbo, a quem formulamos o convite a que anuiu prontatamente, pedindo-nos, curiosamente, que não preocupássemos com o facto de a obra estar escrita em português, pois aprendera minimamente a lidar com esta língua nos seus contactos com arquivos e bibliografia portuguesas. Todavia, ainda lamentou não nos poder receber de imediato em Ouagadougou, pois iria para a Itália, onde seria homenageado numa cerimónia pública organizada pela Universidade de Pádua, para além de uma série de outras conferências que aprazou com várias universidades em Roma, nomeadamente a Pontifícia do Vaticano. Todavia, passado mais ou menos duas semana da data em que lhe remetemos por DHL uma cópia do trabalho, Ki-Zerbo enviou-nos um e-mail com o titilo “SOS” em que dizia que “não obstante entender o essencial, havia aspectos cruciais que gostaria de apreciar connosco”, propondo, para esse fim, que se aproveitasse a sua estada em Roma e se estabelecesse um plano de trabalho de mais ou menos cinco dias.
Efectivamente, eu e o Ki-Zerbo encontrávamos religiosamente todos os dias de manhãna Praça de São Pedro, no Vaticano, onde aprendi, aliás, a observar paciente e discretamente os seus gestos e atitudes quando se entregava às meditações e preces, antes de nos ancorarmos às pacientes e prolongadas sessões de trabalho que fazia questão de conduzir de forma humilde mas professoral. Na realidade, Ki-Zerbo tinha imensas notas manuscritas nas margens das páginas do trabalho que enviáramos, as quais fez questão de comentar com redobrada sapiência e cuidada contextualização históricas, de resto, aspectos que em mim reconfirmaram a ideia inicial com que viajei para Roma, isto é, de que ia encontrar-me em pessoa com uma das melhores cabeças pensantes de África, em suma, um sábio e um verdadeiro detentor do sentido da História africana.
Admirou-me, outrossim, a jovialidade de Ki-Zerbo que, não obstante a sua avançada idade (na altura, era já um octogenário), nunca se cansava de transmitir estímulos às novas gerações no sentido de alguma se fazer para inverter o actual caótico cenário em que se encontra mergulhado a África. Falava lenta e compassadamente, mas contagiava tudo e todos com as suas sonantes gargalhadas e o seu aguçado sentido critico e de humor. Lembro-me com saudade de um memorável jantar que me convidou a fim de selarmos a amizade e comemorarmos o final dos trabalhos. Aí, para além da Madame Aicha, tomou igualmente parte o reverendo Niamba (seu compatriota e prelado-estudante no Vaticano), onde, bem disposto e num ambiente descontraído, ele se revelou em toda a extensão do termo: apreciou um bom prato, fez jus ao Baco, riu a bom rir, brincou, ridicularizou os jogos políticos no seu país (na altura, ele era deputado), deu lições de sapiência como só ele sabe fazer, falou de tudo um pouco e, no final, despediu-se de mim com um efusivo abraço, levando de seguida a mão direita ao coração, em sinal de amizade.
Foi a última vez que vi Ki-Zerbo em pessoa, apesar de desde aí até pelo menos há um ano e meio termos mantido regular correspondência. Com a sua morte, vale a pena aqui recordar que ele foi autor de uma obra de referência sobre o continente africano, Histoire de l"Afrique Noire (Paris, Hatier, 1972). Foi também o primeiro negro a tornar-se professor agregado de História na Sorbonne, na década de 50, e um dos primeiros a refutar academicamente a tese de que a África Negra não tinha cultura nem história. Natural de Toma, no então Alto Volta, fez os estudos liceais em Bamako, no Mali, onde ganhou uma bolsa de estudo para a Universidade de Paris. No final dos anos 50, regressou à África Negra e instalou-se em Dacar, onde criou o Movimento de Libertação Nacional, uma estrutura fundamental na dinamização dos movimentos independentistas dos países da África Ocidental. Exilado durante longos anos, voltou ao Burkina Fasso em 1993 e fundou, no ano seguinte, o Partido para a Democracia e o Progresso. membro da Internacional Socialista. Pertenceu ainda ao Conselho Executivo da UNESCO e foi deputado à Assembleia Nacional. Para Quando África? a longa entrevista que concedeu a René Holenstein, foi publicada em Portugal pela Campo das Letras, em Março deste ano.
Os nossos pêsames à família enlutada e paz à alma de Joseph Ki-Zerbo!