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Segunda-feira, 11 de Dezembro de 2006
José Carlos Schwarz, elementos escolhidos

Norberto Tavares de Carvalho, «O Cote»

     Genebra, 6 de Dezembro de 2006

 

  

                              José Carlos Schwarz e Miriam Makeba

Existem pelo menos duas possibilidades de localização do período aproximativo da chegada à Guiné do avô paterno do José Carlos Schwarz. A primeira estaria ligada à cronologia presencial de famílias de origem alemã que se instalaram no nosso país. O Arquivo Histórico Ultramarino, por exemplo, situa a chegada da família Schacht (Otto Schacht), no século XIX ou seja nos anos 1800. A instalação na Guiné Portuguesa, do avô do José Carlos poderia também se situar mais ou menos nesse período. A segunda hipótese estaria relacionada com o fim da primeira Guerra Mundial (1914-1918), que na Alemanha levou a ruína, a fome e a doença. Muitos cidadãos resolveram abandonar esse país. Poderia ser neste segundo contingente que um tal Schwarz desembarcou na Guiné. Mas é possível ainda que existam outros cenários … Naquela época, sendo Bolama a capital, era aí que se concentrava a maior parte da camada estrangeira. Instalado na Guiné, o exilado alemão teve pelo menos um filho a quem deu o nome de Carlos Schwarz. Este, por sua vez, viria a constituir família. O José Carlos nasceu em Bissau num dia como hoje : 6 de Dezembro de 1949, da união do Senhor Carlos Schwartz e da Dona Fidjinha (Nha Fidjinha), de origem caboverdeana… Eis, em suma, o essencial que pode compulsar na preparação deste pequeno memorial dedicado ao aniversário natalício do saudoso José Carlos.

 

Logo que o seu filho atingiu a idade, o Senhor Carlos Schwarz, tratou de o pôr na escola. Assim, o José Carlos fez os seus “ (…) estudos primários na sua terra e secundários em Dakar, Mindelo e Lisboa (…)”[1]. Segundo um seu próximo conhecido, José Carlos interessou-se cedo pela leitura. A revista « Readers Digest » era distribuída em Bissau, e pensa-se que foi aí que o jovem urbano deu os seus primeiros passos na literatura. Chegou também a se inspirar do magazine brasileiro Ele e Ela , uma revista de tipo Play Boy  que divulgava certas tendências do género masculino e feminino.

 

Em meados dos anos 60, «Tony»   Schwarz, irmão mais velho de José Carlos, instalou-se em Dakar, no Senegal. Ali, José Carlos viveu um certo período (1965-1967 ?), sob os seus cuidados. O «Tony» estaria empregado na Perissac, Oficina Peugeot. Teria inscrito o seu irmãozinho no curso de francês da Aliança Francesa (ou numa escola similar). O «Tony» Schwarz teria em Dakar uma posição social relativamente estável e cedo o José Carlos ver-se-ia a provar as alegrias das noites quentes da capital senegalesa. Nas discotecas, a salsa cubana estava em voga e Laba Sosseh era o seu mais fiel porta-voz.

 

Dakar, a sua sociedade, a sua cultura, e as suas múltiplas perspectivas – ali bem pertinho de Bissau –, era uma outra realidade, um outro universo, uma metrópole africana, que não escapara à atenção do jovem prodígio. De regresso a Bissau, José Carlos não resistiria em frequentar as festas no Cupelom de Baixo, organizadas por um certo Benjamin de Almeida, comerciante (djila) que fazia o seu negócio entre Bissau e Dakar e que era conhecido próximo do «Tony » Schwarz. Esse Benjamin seria originário de Geba, possuindo também ascendência wolof. Indivíduo selecto, ele distinguia-se pelo seu fato aberto, sem gravata, e pelo seu chapéu de palha. No meio da festa, Benjamin mandava «abrir o campo» para deixar o jovem salseiro exibir os seus dotes. Então, José Carlos, ao ritmo das músicas afro-cubanas, com aprumo, e com sapatos de couro de «bicos compridos», tomava lugar no meio da sala com «entre-pernas» e «reviravoltas», dando um verdadeiro espectáculo com intermináveis aplausos à mistura. Nos dias seguintes, nas ruas da Santa Luzia, onde morava com os seus pais, era de novo um verdadeiro cavaleiro que se via no dorso do  “Gaúcho”, seu cavalo, com uma corja de crianças seguindo-o. É aí que nasceria o primeiro mito do “José Cabalo”.

 

Mais tarde, um encontro fortuito ou o retomar de uma velha amizade, viria a ligar o José Carlos ao Duco Castro Fernandes. O irmão deste, o Zeca, do mesmo apelido, considerado na época um bom guitarrista, dava noites musicais de gala no Chez Toi , um dos primeiros Night Club  de Bissau. Duco aprende com o irmão os segredos da viola e transmite-os ao seu fiel companheiro que se aplica na técnica da utilização do instrumento com uma relevada paixão. Este exercício daria nascimento ao grupo recreativo “Roda Livre” e ao conjunto musical “Sweet Fanda”. Mas a vida não eras só a alegria dos momentos de confraternização ou o carinho que brota de um lar familiar. Com a idade, novos desafios se lhe defrontaram.

 

Em 1968, o brigadeiro António Sebastião Ribeiro de Spínola foi destacado para a Guiné como novo Governador, substituindo no cargo o Senhor Arnaldo Sshultz. Aquele, sem perda de tempo, lança mão a então politica da “Guiné melhor “ à volta da Acção Nacional Popular. Na altura, alguns emigrantes guineenses residentes no Senegal, reunidos à volta da FLING (Frente de Libertação Nacional da Guiné), estabeleceram contactos pontuais com o então Governo Colonial. Naquele tempo, as cabeças pensantes mais conhecidas em Dakar eram Benjamin Pinto Bull, Jonas Fernandes, François Cancola, entre outros. O « Tony » Schwarz, que nunca escondera a sua hostilidade relativamente ao PAIGC e pelo seu então líder, Amílcar Cabral, assim como a sua aversão pela projectada união entre a Guiné e Cabo-Verde. (Neste particular, é preciso abrir parênteses para sublinhar que não se trata aqui de um juízo de valor da nossa parte, na medida em que certamente «Tony» tinha argumentos para tal, embora mantivesse uma certa discrição à volta dos debates políticos da altura, pois teria exercido com as suas convicções políticas uma certa influência sobre o seu irmão cadete. Porém, não se trata aqui duma afirmação categórica …

 

Entretanto, também regressa à Bissau o Everimundo José da Silva, filho do «Nhu Musante», do bairro de Chão do Papel. Jovem instruído, este fugira de Bissau, indo-se reunir aos combatentes do PAIGC em Conakry. Daí teria beneficiado de uma bolsa de estudos para um dos países do então Leste (Bulgária, Alemanha ?). Algum tempo depois, teria abandonado os estudos, passando à RFA (República Federal da Alemanha). Sem a autorização de estadia na RFA, e vivendo numa perfeita clandestinidade, Everimundo teria sido alvo de controlo policial numa discoteca e recambiado depois para Portugal, onde foi entregue à PIDE-DGS. A organização secreta do então Governo colonial tê-lo-ia metido na prisão, onde, depois de interrogado e torturado, seria de novo recambiado para a Guiné. Em Bissau, Everimundo foi imediatamente integrado na Acção Nacional Popular. Todavia, não se sabe exactamente quando e nem onde ele e o José Carlos Schwarz travaram conhecimento. Mais adiante, poderão perceber a razão porque o caso do Everimundo José da Silva é evocado nestas linhas.

 

Por volta de 1969, cerca de um ano depois da chegada à Guiné do governador António de Spínola, um grupo de deputados da Acção Nacional Popular (ANP) parte para uma visita a Portugal, no quadro da “Guiné Melhor “. O governo colonial português, na sua propaganda antinacionalista, deu uma grande cobertura a visita. No filme realizado, na região de Lisboa, podia ver-se o José Carlos Schwartz no meio da delegação da ANP, na Fábrica de Explosivos e Munições de Braço de Prata, mais exactamente, em Trafaria. Paradoxalmente, graças a essa visita, o jovem de vinte anos na altura viria a ser confrontado as suas próprias responsabilidades no contexto político-colonial. Este exercício identitário, inteira e profundamente pessoal e de foro interno, deveu-se ao seu encontro, em Lisboa, com certo Filinto de Barros, «De Gaulle» que teria recebido os primeiros ensinamentos do nacionalismo africano, com exemplos da particularidade guineense, o que não constitui segredo, por ser do conhecimento geral, tanto mais que o seu interlocutor, na altura estudante em Lisboa, conseguira convencer José Carlos de que o seu papel não era ao lado do poder colonial. Dito de outro modo, o encontro de Lisboa, com o Filinto de Barros, constituiria o despertar de consciência do jovem pequeno burguês.

 

Todavia, quando o filme da visita a Portugal foi difundido na Guiné, no programa « Por uma Guiné Melhor », um dos actores do filme já não era o mesmo. O feitiço virara feiticeiro. O Everimundo José da Silva, porém, não teve a mesma chance. Foi precipitadamente executado logo depois do 25 de Abril de 1974. Oficialmente, o PAIGC ainda se encontrava em Conakry e nas regiões libertadas, mas a sua ponta-de-lança já operava em Bissau…

 

De « Readers-Digest » e « Ele e Ela », o jovem prodígio passou a interessar-se por outros géneros de literatura. Em Bissau, a PIDE-DGS controlava de uma certa maneira a circulação de revistas subversivas. A Vida Mundial, que dava valiosas informações de política internacional, não fazia parte da restrição. José Carlos fez dela a sua nova leitura de cabeceira.

 

Depois do Duco Castro Fernandes e do Filinto de Barros, um terceiro encontro, também decisivo, iria marcar uma nova reviravolta na evolução política e cultural do jovem rebelde, afinando ainda mais a sua definitiva opção. Seu nome: Aliu Barry. À priori músico tradicional, Aliu evoluíra do seu lado, entre os dois cupeluns. Era também um exímio guitarrista, o que lhe valeu a merecida fama de soberbo ritmista. Rapidamente, uma grande amizade nasceria e reuniria os dois, os quais viria a estar na base da fundação de um dos primeiros conjuntos modernos da música crioula guineense: o  Cobiana Jazz . Este, instalar-se-ia na cena musical guineense fazendo leal concorrência à Juventude 71 que se implantara sobretudo no meio estudantil (de passagem, uma homenagem ao saudoso César Augusto Lopes, ex-lead vocal do grupo, que morreu em Lisboa há alguns meses atrás). Naquela época, Ernesto Dabó evoluía nos Náuticos, enquanto Sidónio Pais Quaresma, “Sido”, preparava-se para encapotar as suas Capas Negras (uma outra homenagem ao Daniel Cassamá, segundo líder vocal do grupo, também desaparecido prematuramente em Bissau). Eis os conjuntos que constituíam as mais ambiciosas perspectivas musicais daquele glorioso período juvenil.

 

Cobiana Jazz, entretanto, propagava na sociedade guineense uma mensagem que ia directamente ao encontro das massas populares, conquistando assim uma boa parte da juventude urbana que passou a ter a possibilidade de pensar e de agir a partir da definição de uma nova base contextual. O fenómeno « Cobiana Jazz » releva também o que Amílcar Cabral postulava à propósito das revoluções, a saber, que só a pequena burguesia tinha a capacidade de as conduzir. Quanto a tese de Cabral relativo ao “suicídio” desta classe após a revolução, isso já pertence a um outro capítulo…

 

Sociologicamente falando, José Carlos Schwarz era o único elemento da pseudo-burguesia, presente no grupo. Esta constatação que de forma alguma retira outros valores do grupo é simplesmente uma questão de referência ideológica, cuja evolução, como disse mais atrás, pode ser discutível. Com o Cobiana Jazz , José Carlos Shwarz, Aliu Barry e as suas retaguardas musicais, entram de rompão no conflito colonial, mudando forçosa e radicalmente uma parte dos peões avançados pelo Spínola, que constituíam, em grande parte, os alicerces da nova política colonial de alienação e submissão da juventude e das massas.

 

Confiantes nas suas acções mobilizadoras, os dois líderes resolvem participar, de maneira frontal, nas actividades da «Zona Zero», a principal antena do PAIGC em Bissau, dirigida por Rafael Barbosa. No auge das suas actividades contra o governo colonial, José Carlos e Aliu Barry decidiram colocar uma bomba na própria delegação da PIDE-DGS em Bissau. Partiram de motorizada que deixaram disfarçada nos arredores, atravessaram o portão principal e foram colocar o engenho na porta envidraçada de grelhas, do lado de dentro. Tratava-se de um potente explosivo de comando à relógio. Uma bomba-relógio ! Seguiu-se depois uma violenta explosão que fez voar em pedaços as grelhas e os vidros da porta da PIDE-DGS. Assim, José Carlos e Aliu tinham ousado desafiar o inimigo numa das suas mais seguras fortalezas. Desde então, a fama do Cobiana Jazz percorrera praticamente toda a Guiné. José Carlos, que fora entretanto chamado à tropa, bem como o Aliu Barry, viu-se afectado como condutor de camião no Fá Mandinga onde os comandos africanos recebiam preparação. Poucos meses depois, seria ele convocado à Bissau onde recebeu ordem de prisão da PIDE-DGS. Aliu Barry teve também a mesma sorte.

 

Deportados para a colónia penal da ilha das Galinhas, Aliu cumpriu aí a sua sentença : de dois anos. José Carlos só passou três meses na ilha, tendo sido retornado ao pavilhão de isolamento da segunda esquadra em Bissau, para aí concluir o resto da sua pena, fixada então em três anos. Esta dupla sanção dever-se-ia aos seus presumidos contactos com a população da ilha das Galinhas ou ao facto de, entretanto, a PIDE-DGS ter descoberto outros casos em que estaria implicado. José Carlos, por seu turno, defendia a segunda hipótese. Mas o afecto que dedicava aos bijagós que constituíam a população da ilha das Galinhas era eloquente. Aliás, chegou a reivindicar essa paixão com a sua famosa canção “Djiu di Galinha” [2].

 

Ora, conheci de perto o José Carlos justamente na altura em que a PIDE-DGS o transferiu da ilha das Galinhas para Bissau, pois em Novembro de 1972, na sequência de uma greve de estudantes, precedida de manifestação ao Palácio do Governo, em que tinha sido detido por esta polícia política, por ordem do general Spínola. Ocupei momentaneamente a cela n.º 12 do Pavilhão de isolamento. O José Carlos encontrava-se na cela n.º 16, a última do corredor. Quando lhe expliquei que fazia parte de um grupo de estudantes que fora reivindicar um tratamento mais condigno no plano dos estudos, entusiasmou-se tanto que pronunciou a frase : “É o segundo Pindjiquiti !  “. Fui libertado algumas horas mais tarde em troca duma advertência pronunciada pelo Inspector-adjunto da PIDE-DGS, o Senhor Fragoso Alas, que assim procedeu porque não tinha matéria suficiente para me prender. O seu sermão asseverava que “não é porque o vizinho quer aumentar o seu terreno que vai  estendê-lo sobre as margens do outro vizinho”. Confesso que até hoje ainda não percebi o sentido desta frase.

 

Todavia, a sentença viria a recair sobre mim em Maio de 1973. Quando me empurraram para a cela n.º 6 e fecharam a porta, senti umas batidas na parede e lembrei-me logo da técnica e respondi batendo da mesma forma. Uma voz vinda do fundo do corredor inquiriu: – Quem é? Foi assim que soube que era a voz de José Carlos Schwarz, que se encontrava na mesma cela havia seis meses! Estivemos juntos, eu na minha cela e ele na sua, durante cerca de quatro meses. Falamos de tudo e … de nada. Fiquei desiludido ao saber que, afinal, havia traição na « Zona Zêro ». Das nossas conversas, lembro-me de o ter contado uma cena que o divertia imenso, pois relacionava-se com uma peregrinação que minha mãe fez à Fátima, em Portugal, cerca de um mês antes de eu ter sido preso. A história, que o divertia imenso, e que amiúde pedia que a contasse novamente, reportava-se ao facto de a minha mãe ter sido abordada em Lisboa por uns estudantes com os quais me encontrava ligado. À cabeça do grupo estava o seu neto, de seu nome, João Nelson Sá Nogueira, “Nuno Quipa”, na altura, estudante em Geologia, os quais disfarçaram na bagagem dela uma série de livros e revistas “subversivas”. Quando a minha mãe regressou à Bissau, chamou-me e ordenou-me que abrisse a sua mala. Peguei nos livros e, enquanto ela vociferava que não me queria ver-me metido naquelas relações, já tinha ido para o quarto maravilhar-me com A Mãe, de Máximo Gorki, O Diário do ‘Che’ na Bolívia …, Portugal e o Futuro, de Spínola, etc., etc. Mas o que o José Carlos parecia preferir e me pedia para lhe repetir vezes sem conta, era uma história bastante engraçada ligada à uma menina que denunciara aos meus pais o pedido de namoro que a fiz, o que me tinha envergonhado sobremaneira porque tratava-se de uma prima. Cada vez que contava este episódio, ele ria-se como se fosse a primeira vez que ouvia a história. A vergonha, diria ele mais tarde numa das suas intervenções – fazendo referência a um alto dirigente do PAIGC –, é pior do que a morte! Mas isso nada tem que ver com a minha banal história.

 

Foi José Carlos, com efeito, quem me iniciou nas regras do Pavilhão. Fiquei surpreendido ao saber que a PIDE-DGS colocara em toda a extensão do corredor, um sistema de escuta que permitia controlar as conversas dos prisioneiros através duma central. Para evitar eventuais salamaleques, cada prisioneiro tinha um nome de código ou era identificado por um assobio. O José Carlos era destro no exercício. O seu nome de código era “Djiu “ e mais tarde “ Sidi”. A mim, baptizou-me “N’barrim” (irmãozinho no dialecto mandinga). Havia “Belankufa”, “Canhuto”, “Zarra” e variadíssimos outros que se competiam no Pavilhão.

 

“Djiu” defendia a tese de que antes de ir para a luta armada ou de efectuar acções de guerrilha urbana, os jovens deveriam antes passar pela prisão da PIDE-DGS, provar o castigo, a vida dura, etc. Nesse sentido, ele próprio preferia que o retornassem à ilha das Galinhas ao invés lugar de ser posto em liberdade. Para ele, castigo era algo de pedagógico que contribuía para a maturidade. Perdido nos seus argumentos, postulava para mim a necessidade de sua deportação para a ilha das Galinhas, o que naturalmente me dava cabo dos nervos, recusando-me sistematicamente a prosseguir conversa nesse sentido. Fértil em ideias, instaurou no Pavilhão uma escala hierárquica que consistia em dispensar o merecido respeito aos condenados de três anos, depois aos dos dois anos, de um ano, meses, etc. Assim, o recém-chegado era básico na pirâmide. Ele era “comandante”, pois tinha a pena mais elevada (3 anos) assim como o Biéne Na Bion, um guerrilheiro que conhecera na ilha das Galinhas, que tinha sido posto em liberdade meses antes, mas que fora de novo capturado pelo exército português e, desta vez, condenado a três anos de prisão. José Carlos não parava de criticar o guerrilheiro, acusando-o de negligência e de falta de rigor em relação a isto e aqueloutro. Dizia-lhe assim: – desta vez vão matar-te.

 

Mas, um dia, quando o seu colega “comandante “ apareceu no corredor com as nádegas completamente inchadas de tanta palmatória levada, depois de um intenso interrogatório, lá estava o “Djiu”, em primeira linha, a consolar e a animar o combatente. Meses mais tarde, quando lhe comuniquei que eu ia ser deportado por três anos de trabalhos forçados na Colónia Penal, disse-me: – Agora sim, temos a mesma patente!   Eu que nunca levara aquilo a sério, comecei a me interrogar se o tempo que passara no isolamento não o teria afectado o juízo, pois fiquei com o sentimento de que na sua frase de despedida ele tinha posto muita convicção.

 

José Carlos era o “condomínio” do Pavilhão. Conseguira a autorização de ser o último a ir tomar banho e fazer a toilette  e, o que apreciava muito, passar pano pelo corredor e limpar a casa de banho. Deixavam-no sozinho a “passear” cerca de 15 minutos no corredor, tempo suficiente para falar com outros prisioneiros e oferecer frutas e outras guloseimas que recebia de casa. Durante esse período, tive o grande privilégio de ser um dos primeiros “padrinhos” das belas e salientes canções que José Carlos compôs durante o cativeiro: Minino de criaçon , Muscuta, Quê qui minino na tchôra , Djénabu ,  N’djanga e toda a série que se lhes seguiu. Realizávamos até sessões de discos pedidos  que eu animava e ele cantava.

 

Um dia, os guardas vieram buscar-me e fui transferido para a cela n.º 7, do outro lado do Pavilhão. Devíamos estar nos meses de Setembro ou Outubro de 1973. (A margem de erro é plausível.) Conduziram-me no pátio do Pavilhão onde me fizeram esperar alguns minutos. A cerca de pelo menos três metros do lugar onde me encontrava, jazia um corpo quase inerte em cujas narinas se notavam ainda vestígios de sangue coagulado. Fiquei estupefacto. Mas tive tempo de notar que o indivíduo aí estendido, de tez negra e de tronco nu, era dotado de uma certa corpulência, cor relativamente esbranquiçada e aparentando um evidente cansaço. Da minha nova cela, transmiti imediatamente a imagem que gravara na mente. Ninguém conseguiu identificar de imediato o prisioneiro. Alguns dias depois, o “Belankufa” (Duarte Cabral) anunciava ao Pavilhão a morte do … Domingos Badinca, um dos responsáveis da rede clandestina do PAIGC de Bolama.

 

José Carlos, antes de ser preso, fascinara-se com a leitura de “Os condenados da terra”, de Franz Fanon, que circulava no meio da camada intelectual daquele tempo em Bissau, como sejam os casos de Jorge Ampa Cumelerbo, Fernando Delfim da Silva, ”Djumbo”, Adalberto (o seu apelido escapa-me), Idrissa Djalló, etc. Teria sido o Mumini Embaló quem ofereceu um exemplar da obra de Franz Fanon ao José Carlos. A figura principal da investida do escritor antilhês contra o racismo e a miséria inspirou o nome do Naman, seu primeiro filho da união com a Teresa Loff Fernandes, que conheceu em Lisboa. De origem cabo-verdiana, nascida no Senegal, esta era também de descendência alemã. Alegre e simpática, a mulher do José Carlos tomava parte activa nas actividades clandestinas da “Zona Zero”.

 

Fã incontestável do Kanté Manfila, José Carlos admirava a proeza técnica do congolês Franco, bem como as fecundas melodias do Balla e dos seus “Balladins” e a excelência do Kélétigui Traoré, que tinha a magnificência de combinar nos seus arranjos musicais o moderno e o tradicional.

 

Em Bissau, José Carlos Schwarz foi posto em liberdade logo depois do 25 de Abril e, acto contínuo, convidado a pronunciar um discurso radiodifundido. Antes de ser preso, fizera este sermão: “Juro-vos que, por mais que o pau permaneça no mar, nunca se transforma em crocodilo!”, o que traduzido em linguagem comum significa que tarde ou cedo assistir-se-ia ao fim da opressão colonial [3]. E aí estava ele de novo, numa comunhão perfeita com o seu “público”, a confirmar a sua ousada profecia.

 

Da ilha das Galinhas, ouvi o discurso que iniciou, dizendo: “Irmãos!”, numa voz tenra e carregada de emoção. O feiticeiro transformara-se em profeta.

 

Três anos antes do emblemático 25 de Abril, mais precisamente na madrugada do dia 3 de Julho de 1971, uma figura mística sucumbia em Paris. Também nascera em Dezembro, tinha apenas 27 anos e a sua voz, como a do José Carlos, provinha do Zodíaco. Mas esta já é uma outra história...

 

Enfim, existem dores neste mundo, que nem o tempo consegue cicatrizar.

NOTAS:

[1] - José Carlos, LP Djiu di Galinha, (com dedicatória de Miriam Makeba), 5.11.1978

 

[2] - José Carlos, LP Djiu di Galinha.

 

[3] - José Carlos Schwartz e o Cobiana Jazz, faixa “N’djurmenta bós!”

 

NOTA DO EDITOR:

José Carlos Schwarz nasceu em 1950. Era poeta e músico e, inquestionavelmente, considerado o pioneiro da moderna música guineense. Em 1960, escreveu uma série de poemas em francês e português e, no início dos anos 70, fundou, com um grupo de amigos o agrupamento musical Cobiana Djazz, um dos percursores da música moderna do país. Nesse grupo, a maior parte das músicas foram compassadas por José Carlos Schwarz. Estas privilegiavam sobretudo temáticas como o amor, a mulher, as crianças e o sofrimento. Muitas delas eram também canções de criticas veladas ao injusto sistema colonial e, naturalmente, de exaltação patriótica, em que sub-repticiamente apoiava os ideais da independência por que lutava o PAIGC. 

 

Conheci-o, se bem me lembro, antes do 25 de Abril (1971/1972?). Estávamos sentados (eu e o Jeremias Pereira, vulgo “Tony Bumbero") defronte ao Liceu Honório Barreto, quando apareceu uma pessoa que envergava balalaica verde e farta barba, abordando-nos quase  em segredo, ao mesmo tempo que perguntava se sabíamos que os “tugas” eram colonialistas e que era necessário fazer-lhes regressar à sua terra. Não me lembro qual foi a minha resposta (nem a do Jeremias), mas tenho presente que foi a primeira vez que ouvi falar disso (uma dívida eterna!), não podendo, todavia, garantir o mesmo em relação ao Jeremias, na medida em que foi quem me alertou de que o desconhecido que havia falado connosco era o famoso e mítico José Carlos Schwarz, do Cobiana Djazz.

 

Na fase pós-independência, José Carlos ocupou as funções de director do Departamento de Arte e Cultura e de subcomissário para a Juventude, Desporto e Recriação. Porém, nem isso fez refrear a sua inquietação pelo bem público. É então que produziu as músicas mais caústicas e acutilantes de critica social contra o establishment, a exemplo de “Apili”, “Si bú sta diante na luta” ou ainda "Saliu ku Lamara"”, Borgonha más morte Kalá (“Si garandi di cassa ta tchami e fidjus tudo ta nornori”) ou “Púbis na tchora pena” (inédito), entre outras. Esses temas, tão belos quão profundos, mesmo do ponto de vista do seu conteúdo, afiguram-se, cumulativamente, como o melhor testemunho das desilusões de um povo que depositara no advento da independência altíssimas expectativas, mas que cedo foi forçado a acordar de uma espécie de idílio colectivo em que se deixou embalar.  De tal forma as suas canções eram incómodas que, segundo se diz, resolveu-se nos bastidores do poder afasta-lo temporariamente da cena política, nomeando-o Encarregado de Assuntos da Embaixada da Guiné-Bissau  em Cuba, onde viria a falecer, aliás, na aurora da vida, com apenas 27 anos, na sequência de um acidente aéreo ocorrido a 27 de Maio de 1997 no aeroporto de Havana.

 

Na realidade, antes da sua morte, José Carlos era já um mito vivo. Com o seu desaparecimento físico, transformou-se rápida e indistintamente num misto de herói e mártir. Não só porque a ele deveu-se a modelação da música moderna guineense, em que revelou os rasgos de génio criador de que era portador; nem apenas porque coube-lhe a proeza de ter desafiado como poucos as autoridades coloniais (esteve preso pela PIDE-DGS entre Maio de 1972 e Abril de 1974), mas porque a longevidade das suas verdades chocavam e ainda chocam com a mundividência hipócrita dos que, agindo em sentido contrário, apresentavam as suas “virtudes” como únicas, absolutas e inquestionáveis, a ponto de infelizmente se contar às centenas, os compatriotas trucidados e milhares de outros obliterados, tudo em nome de paradigmas que, anos depois, paradoxalmente, os próprios se encarregaram de fazer passar à História. Feliz ou infelizmente, José Carlos já não teve tempo de assistir a tudo isso …

Leopoldo Amado

 



publicado por jambros às 12:01
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