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Quinta-feira, 4 de Janeiro de 2007
Guiné-Bissau:Deus está em Varela, uma povoação triste, desoladora e isolada

Por José Sousa Dias

                                             Aspecto de uma ponte na estrda S. Domingos-Varela

Longe dos seus tempos áureos, Varela, no extremo noroeste da Guiné-Bissau, é hoje uma povoação triste, desoladora e isolada, cuja meia centena de pescadores ainda confia no mar generoso e, sobretudo, em Deus.

"Dieu est avec nous (Deus está connosco)" é o nome de uma das mais de duas dezenas de pequenas embarcações, cavadas em espessos troncos de árvore, em que diariamente os pescadores se fazem ao mar para retirar das quentes águas o alimento de subsistência, que se juntará, mais tarde, aos que se recolhem da terra.

A época das chuvas ainda está longe de terminar, lá para fins de Outubro, os solos estão exaustos e saturados de tanta água e, à chuva, com os ventos que a anunciam, os pescadores de Varela são ainda aqueles que mais fé têm, aventurando-se quando há uma aberta.

Pobres, extremamente pobres, falando entre eles em francês, wolof (crioulo senegalês), flupe (ou njola, dialecto local) ou ainda em crioulo guineense – poucos são os que falam português -, não sorriem quando o jornalista lhes pergunta sobre as informações que dão conta de que Varela se tornou num dos pontos de partida para as novas rotas da imigração clandestina, mas sabem, isso sabem, que lhes poderia trazer muito dinheiro.

Não sorriem, mas sonham. Não com o dinheiro que poderiam eventualmente ganhar caso soubessem quemestá por trás dessa "máfia", mas apenas em levar uma vida mais digna numa povoação que, não há muito tempo, talvez dois três anos, era o "ex-libris" do turismo guineense, fazendo sombra às exóticas praias do arquipélago dos Bijagós.

Hoje, Varela, a pouco mais de quatro quilómetros da fronteira com o Senegal, é uma sombra de si mesma, com grande parte das casas destruídas devido à força dos ventos anunciadores da chuva ou em ruínas face ao abandono dos seus locatários, grande parte deles a viver em Bissau. "Não há dinheiro para nada. Não há dinheiro a circular em Varela. Não há comércio. Os hotéis estão todos fechados e em ruínas. Só comemos o que os pescadores nos trazem, que trocam pelo arroz que os agricultores cultivam", lamenta-se à Lusa Landim Sadjo, o presidente do Comité de Estado de Varela. No cargo desde a independência formal da Guiné-Bissau, em 1974, Landim Sadjo lembra que as razões são sempre as mesmas: conflitos militares, irresponsabilidade do poder central de Bissau e a "infelicidade" que é residir fora da capital guineense, não dispondo de um único médico nem enfermeiro, pois o mais próximo está em São Domingos, 55 quilómetros a leste.

Varela está, mais uma vez, totalmente isolada. Só que, desta vez, a coisa é séria, pois o acesso à povoação é bastante complicado, não há luz eléctrica, telefone fixo é apenas uma recordação e até as novas tecnologias, como o uso dos telemóveis, estão colapsadas. Malun Indjai é o proprietário de uma "boutique" que vende latas de leite concentrado e condensado, latas de tomate, de milho, velas e pão, entre calções em segunda mão e chinelos empoeirados a um canto.Há cerca de três meses, através de um complicado sistema de "antenas", conseguiu captar o sinal das redesde telemóvel do vizinho Senegal e é ele quem assegura(va) as comunicações com o exterior. Mas, azar, as antenas da luxuosa Cap Skirring (Senegal), a sete quilómetros em linha recta, também avariaram.

Acessível apenas pela "estrada" que parte de São Domingos, percorrê-la é, no entanto, neste momento, um verdadeiro inferno, pois as "bolanhas" (campos de cultivo) estão saturadas com a água das chuvas e inundaram literalmente a já debilitada picada, em que qualquer viatura mergulha sem dó nem piedade. A agravar ainda mais a situação, a ponte de madeira que liga a picada de cerca de 20 quilómetros entre

Susana e Varela foi destruída após um acidente com um camião carregado de arroz para a população local, inutilizando-a "até que alguém se lembre" de a reparar. "Já avisámos as autoridades de São Domingos, que disseram que iriam avisar Bissau. Mas até hoje não se obteve resposta. Vai assim ficar até alguém se lembrar", lamenta Landim Sadjo, recordando que a situação já era difícil com as minas terrestres ali colocadas em Abril pelos rebeldes de um movimento independentista senegalês.

Segundo Landim, durante dois meses não se circulou naquela via, uma vez que haviam minas terrestres e só depois da explosão de uma delas, que vitimou 14 dos 30 civis que seguiam na "candonga" (viatura de transporte de passageiros), é que começaram a retirá-las. A passagem ficou aberta um mês depois, mas os rebeldes do Movimento das Forças Democráticas de Casamança (MFDC) já as tinham também disseminado pelos campos de cultivo, privando os agricultores locais de os trabalhar, valendo-lhes a ajuda internacional, a mesma que levaria o arroz no camião que se encontra ainda dentro do ribeiro que passa por baixo da inutilizada ponte de madeira.

Hoje em dia, o sector de Varela, que congrega também 14 tabancas (povoações), conta apenas com cerca de cinco mil habitantes, mais 500 que há 10 anos.O posto da polícia desabou e o comando é agora no quarto/casa do filho de um dos três polícias da povoação. Não há aquilo a que se possa chamar rua. Mas todos parecem resignados à sua sorte. "Dieu est avec nous".

JORNAL SOL PORTUGUÊS (CANADÁ) – 13.10.2006



publicado por jambros às 08:41
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Quarta-feira, 3 de Janeiro de 2007
Acentua-se o ciclo de desaparecimento físico da geração de históricos da libertação

           

 Rafael Barbosa

       

    Vasco Cabral

 

      Benjamim P. Bull

A morte de Rafael Barbosa confirma o ciclo vertente de desaparecimento físico da geração da luta pela independência (so em 2005, registaam-se a morte de Benjamim Pinto Bull morreu em Janeiro , de Estêvão Tavares, em Fevereiro, e de Vasco Cabral, em Agosto), o qual, alias, deveria alertar o Estado da Guiné-Bissau para a necessidade de inequívoca e definitivamente assumir uma postura de apoio à elaboração da Historia Contemporânea do pais, com o concurso dos protagonistas que ainda se mantêm vivos.

Leopoldo Amado



publicado por jambros às 09:47
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Odiado e idolatrado, assim era Rafael Barbosa!

Bissau - Rafael Barbosa,

    Leston Bandeira 

In http://o-romeiro.blogspot.com/2005/08/bissau-rafael-barbosa.html

 

Rafael Barbosa, fotogrado por Leopoldo Amado em 1989
Entre 1978 e 1980 tinha trocado com o Xavier algumas opiniões sobre o projecto que ambos idealizávamos - um Jornal sobre África. A minha ida para Bissau era a grande oportunidade de reavivarmos o sonho. Ele esteve 15 dias comigo e não perdemos a oportunidade. Lembro-me que, naquela altura, considerámos não ser ainda oportuno arrancar com ele. Não só porque as condições políticas não eram favoráveis, mas também porque seria difícil arranjar dinheiro.

Para ambos, a questão do dinheiro era menor, já que tínhamos a certeza que iriamos fazer um bom jornal e a qualidade mobilizaria os apoios necessários (tão lunáticos que cheiram a idiotas...).

Durante a nossa estadia conjunta em Bissau, o Xavier falava todos os dias no seu grande desejo de entrevistar o Rafael Barbosa, que estava em prisão domiciliar numa casa de primeiro andar, mesmo defronte do gabinete do chamado Comissário Principal (primeiro-ministro). Era um espectáculo: ao fim da tarde, toda aquela gente que saía da cidade e se dirigia para os subúrbios,para as respectivas casas, passava em frente à casa, onde, na varanda, estava sentado Rafael Barbosa. Toda a gente curvava a cabeça em respeitoso e discreto cumprimento.

Aquele homem, que tinha sido condenado à morte, libertado durante o 14 de Novembro, directamente para a Rádio onde foi anunciado como "um dos melhores filhos da nossa terra" e foi ovacionado por toda a cidade como se se tratassse da multidão de vários estádios de futebol juntos e onde fez um discurso anti-soviético, anti-cubano e anti-cabo-verdiano talvez tivesse sido uma hipótese de saída. Talvez...mas a verdade é que não se pode estar contra tudo e todos.

Ora bem, um dia, comigo a conduzir a Diane vergonhosa que a ANOP tinha em Bissau, saímos para dar uma curva e vermos, mais numa vez, o espectáculo da prestação de homenagem ao Rafael Barbosa. Chegados em frente à casa do homem, parei o carro,pus nas mãos do Xavier uma máquina fotográfica e um gravador e disse-lhe: "anda...sobe!"
Ele assim fez. Quando lá chegou, o polícia que tomava conta do "prisioneiro" mandou-o entrar. "O homem está à sua espera..." O Xavier ficou surpreendido, mas avançou e lá contou ao que ia. No meio da conversa ambos perceberam que tinha havido um equívoco. Barbosa estava à espera de um cooperante holandês e como o Xavier é mais parecido com um holandês do que com um português, ali estava a aproveitar o bigode loiro e a semelhança com os homens do Norte.

Fizeram a entrevista, gravada e com fotografias. Rafael disse tudo, ou pelo menos o que lhe interessava dizer. Era um documento importante, daqueles que qualquer jornalista gosta de ter em sua posse. Nessa noite comemorámos o acontecimento.

Um ou dois dias depois Xavier abandonou Bissau e entre nós tinha ficado combinado que qualquer coisa que ele fizesse sobre a Guiné Bissau teria de ser assinado, para que não houvesse confusões e não me fossem atribuídos os textos deles.

Entretanto, eu montei a minha rede (jornalista sem rede é palhaço). Entre os seus membros tinha um interlocutor directo de Rafael Barbosa, que, entretanto, tinha sido levado para uma cadeia a sério, junto ao Porto de Pidjiguiti.

Rafael Barbosa era precioso porque a sua capacidade de persuasão era tão grande que, em pouco tempo, tinha os carcereiros na mão. Além disso conhecia todos os homens que naquela altura constituiam a super-estrutura do Estado e alguns deles iam falar com ele à prisão.

Não resisto contar aqui, entre parêntesis uma estória interessante sobre um deles - o Yafai Camará, vice-presidente de Nino Vieira:no final da guerra, em 1974, Camará era analfabeto - não tinha havido tempo para a escola. Os camaradas do PAIGC levaram-no para o Mindelo, onde o matricularam na Escola, No final do ano, Yafai passou a terceira classe e os camaradas foram felicitá-lo . " Muito bem, Yafai, agora tens que fazer a quarta...""...Cusé tene mas?" ( o quê tem mais?) - perguntou o aflito estudante, futuro vice-presidente da República da Guiné Bissau.

Além do noticiário normal, muito do qual surpreendia claramente as autoridades guineenses, cuja estrutura suprema era um Conselho da Revolução (poucos deles sabiam que eu já tinha estado em Bissau e tinha, portanto, um conhecimento razoavelmente bom do tecido social), fazia muitos textos de opinião sobre a situação - alguns dos quais, com ligeiras diferenças, apareciam em jornais portugueses assinados por ilustres jornalistas "especialistas em assuntos africanos".
Nesses textos de opinião defendia muito claramente o diálogo com Cabo Verde e a reunião entre Aristides Pereira e Nino Vieira, que chegou a estar marcada para 12 de Março, no Maputo.

Estes textos desagradavam claramente a uma facção do Conselho da Revolução, comandada por Vitor Saúde Maria.


publicado por jambros às 09:30
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Morreu Rafael Barbosa, pioneiro e histórico da epopeia da libertação

 

O militante nacionalista guineense Rafael Barbosa morreu hoje, em Dacar, Senegal, para onde tinha sido evacuado em tratamento médico, disseram à Lusa fontes da família do defunto e da Presidência da República.

Rafael Barbosa, de 81 anos, fora evacuado a semana passada para Dacar, a expensas da Presidência da República, em tratamento médico, depois de ter estado internado nos cuidados intensivos do Hospital Simão Mendes, em Bissau.

Fonte familiar disse à Lusa que o histórico nacionalista guineense faleceu hoje no hospital Central de Dacar, onde se encontrava em «tratamento acompanhado».

Neste momento de dor e luto para a família e para os guineenses em geral, gostaria de expressar os meus mais sentidos pêsames a família enlutada, deixando para depois a tarefa de assinalar este infortúnio com um trabalho que não deixara certamente de realçar o papel deste extraordinário nacionalista no processo que conduziu a Guiné-Bissau e Cabo-Verde a independência.

PS: Escrevemos sem acentos, pois encontramo-nos em Paris e não dominamos o teclado local.

Leopoldo Amado



publicado por jambros às 00:57
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Sexta-feira, 22 de Dezembro de 2006
BOM NATAL E BOM 2007 PARA TODOS!

 

 

Africa merece mais e melhor em 2007! Guiné também!

Votos pois de um santo Natal e próspero Novo Ano para todos!

Leopoldo Amado

 



publicado por jambros às 11:08
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Domingo, 17 de Dezembro de 2006
Luandino Vieira: "Nunca parei de escrever"

Luandino Vieira

Neste quase Inverno de tanta chuva, a água brota do muito verde por todas as partes, o ar é alto, tudo cheira a terra. José Luandino Vieira, 71 anos que ninguém lhos dava, começou por plantar esta cerejeira que já vai mais alta que dois homens. E a sua casa é isto. A salinha para onde se entra, que também é cozinha e lugar de escrever, um quarto quase nu, uma pequena casa de banho. Aqui aconteceu a primeira parte de uma longa conversa continuada em Lisboa.

MIL FOLHAS - O seu último livro antes deste foi escrito em 1972. D

Durante todos estes anos... LUANDINO VIEIRA - Fui escrevendo sempre. Quer que lhe mostre? [Levanta-se, vai à mesa encostada à janela e começa a tirar pastas.] Editora nenhuma me diz: é um livro por ano ou por mês... [Das pastas caem pequeninos blocos de apontamentos do tamanho da palma da mão.] Eu gosto muito de viver. Se estiver sol já não escrevo, saio para a rua. Se está a chover também visto o impermeável e vou andando. Só em último caso, quando já não posso fazer mais nada... [Pega num caderninho.] Este é o primeiro da trilogia [abre-o, folheia]... 1996... foi quando comecei a anotar... [lê um excerto]. Um caderninho anda sempre comigo [pega noutro com um recorte do Calvin colado na capa]. "Eh pá, com um calor destes não tenho vontade de fazer nada" [diz Calvin a Hobbes]. Claro! [Pega noutra pasta] Este é o segundo volume dos guerrilheiros. ..

P.- Mas escreve nestes caderninhos?

R.- Não. Tomo os apontamentos.

P.- E depois escreve à máquina?

R.- Não, à mão.

P.- A trilogia do "Livro dos Rios", de que ainda só temos este primeiro volume, é o quê? R.- A ideia é a relação entre o homem angolano com a natureza angolana, no contexto da luta de libertação nacional. A trilogia é só a travessia de um grupo de guerrilheiros de um ponto para outro, numa pequena missão, ter contacto com alguém da frente interna que traz medicamentos.

P.- Anos mais recentes de Angola não vão estar lá.

R.- Não. Até porque...

P.- Não os viveu. R.- Vivi até 1993, mas isso... é parte da minha realidade mas não povoa o meu imaginário. Até porque não a percebo muito bem. Só escrevo quando posso mentir sobre os assuntos.

P.- Aí já estão claros.

R.- É. A História de Angola que incluo aqui está clara, qualquer que seja a leitura. A partir daí posso inventar.

P.- Mas disse uma vez que escrevia para perceber.

R.- Os assuntos estão claros, agora, o que querem dizer... É no momento de escrever que muitas vezes se explicitam. Passo o meu dia a dia aparentemente desligado da literatura e no entanto é literatura do princípio ao fim.

P.- Quando anda nestes campos, vai ali com as ovelhas, vai plantar a cerejeira...

R.- Não tenho consciência. Mas depois dou-me conta de que o modo como vejo isso é sempre ficção.

P.- Por que é que passou 13 anos neste sítio? O que é que ele lhe dá? R.- Dá-me o total corte com Angola, o que faz com que eu esteja sempre em Angola.

P.- Dá-lhe a Angola em que pode inventar?

R.- A que conheço, em que vivi, a que me vai dando alimento. Se vivesse em Lisboa, fatalmente encontrava os meus compatriotas na rua, nas obras, no metro, e isso é que faz com que se produza a ideia do exílio. Tinha que viver com os meus compatriotas numa realidade que não era a nossa.

P.- A sua Angola pode existir aqui?

R.- Ela está em mim onde quer que eu esteja. Agora, aqui assumo-a sem dificuldade. Olho e nada disto me diz nada em relação a Angola.

P.- Nesse sentido, este lugar liberta-o.

R.- É um espaço de muito mais liberdade do que numa cidade onde encontrasse outros angolanos. E como leio jornais, sei as notícias...

P.- Tem Internet?

R.- Não, culpa minha. Não lido com computadores.

P.- Tem TV Cabo, rádio...

R.- Não tenho rádio, tenho Antena 2! Sou dos que ouvem 24 horas por dia.

P.- Lê os jornais angolanos.

R.- Porque mos mandam.

P.- Saiu um texto de José Eduardo Agualusa na "Capital"...

R.- Pedi ao meu filho que o trouxesse. Disseram-me: o José Eduardo varreu o teu livro.

P.- O que ele diz é que é um grande livro, mas que no sentido de quem esperava um livro novo é uma desilusão.

R.- É a leitura dele.

P.- Ele tinha vontade de ler sobre uma Angola mais actual.

R.- Mas isso então é muito simples. O Zé Eduardo, que é escritor, escreve sobre essa Angola. É o que tem feito.

P.- Nos anos 80 o senhor disse que gostava de escrever um livro que representasse uma ruptura como o "Luuanda" representou, um livro novo. "O Livro dos Rios" é esse livro?

R.- Não. Uma coisa é a gente gostar, outra é ser capaz. Já perdi essa... era estultícia essa declaração.

P.- Quando veio para Portugal, em 1993, veio directamente para o convento?

R.- Vim porque me foi atribuída uma pequena bolsa pela embaixada portuguesa para um ano, e muito embora as bolsas sejam muito reduzidas, o meu modo de vida permitiu-me viver com ela dois anos. Então procurei um sítio para me isolar, porque pretendia mesmo dedicar-me à escrita.

P.- E já era este livro?

R.- Não. Tinha que ser qualquer coisa com a guerrilha na floresta. Era o fascínio da natureza a impor-se, a minha experiência no rio Kwanza, tudo isso. Mas não tinha nenhum projecto definido. No fundo aceitei porque precisava de descansar e me dei conta de que tendo saído da televisão, da União dos Escritores, do Instituto de Cinema, que o que sabia minimamente fazer estava feito, já tinham ficado outros jovens no meu lugar...

P.- Podia regressar a si.

R.- É, um pouco mais a mim. Ser escritor.

P.- O que existia na sua cabeça dessa ideia da guerrilha era o quê?

R.- As histórias que ouvia contar, o conhecimento que fui tendo com os antigos guerrilheiros. Se calhar era assim uma ideia romântica do que significa uma guerra de guerrilha, que tem tudo menos de romântico. E também por me parecer que era do ponto de vista do imaginário o melhor modo de pegar na realidade pós-colonial. A luta de guerrilha já era a contestação, não eram os meus temas [anteriores] do musseque, daquela sociedade e daqueles personagens, era já mais à frente. E continha a minha própria experiência na natureza, a minha vida em Angola. Permitia-me fazer um livro que fosse uma espécie de hino... Às vezes penso que é um livro patriótico, que conclama o amor à terra angolana. Estava com uma ideia muito romântica de escrever sobre árvores, peixes, pássaros, céu, água, rio, e não percebia muito bem como é que o homem havia de estar no meio disso. E percebi que só um grupo de guerrilheiros que tem que passar por isso, mas é alheio a isso, porque o objectivo é outro e as condições não o permitem, a não ser a um personagem que a gente invente, um guerrilheiro meio sonhador, um homem do mar, da praia, que está no meio da floresta. Esse contraste é mais evidente do que para quem cresceu ali. Vim com isso para Portugal. Mas cheguei e deixei-me estar, como é a minha maneira. O meu pai já tinha falecido e a minha mãe pediu-me para eu ficar. Então tive um certo alívio. Porque eu percebia que não ia escrever nenhum livro em dois anos. A bolsa era para investigar, ler, recolher elementos. Foi o que comecei a fazer.

P.- Vivendo onde, primeiro? R.- Sempre no convento. [Chegado de Angola], saí de Lisboa, viajei para o Porto onde encontrei um amigo que me disse: "Arranjo-te um sítio para ficar em Vila Praia d'Âncora." Fui, cheguei, vi, disse- lhe: "Fico por aqui. Mas como a irmã do José Rodrigues tem sempre andado a falar no convento de Sampaio, quero cumprimentar o Zé e ver como é..." Chego lá e o Zé diz: "Podes ficar, escolhe. Naquela casa que fiz para a minha irmã ou ali..." Gostei logo [da casinha onde está agora]. Olhei pela janela, vi o rio, assim numa curva, com uma ilha... Isto parece o Kwanza naquela curva, com aquela ilhota... E sentia-me um pouco cansado. São muitos anos, desde 1975 a 1993, sem pensar em mim, no meu mundo. Além do mais, eu tinha 58 anos. Quando minha mãe me pede, com uma lógica imbatível, não tens nada que fazer, não tens ninguém à tua espera, estou aqui eu e tu desde os 15 anos que não me ligaste nenhuma, estou para aqui solitária, eu disse: "Ok, eu fico." Mas não queria abandonar o convento. Então, duas vezes por mês, chovesse ou fizesse sol, metia-me na camioneta que passa em Cerveira e pára em Fátima [onde a mãe vivia]. O trato tinha sido esse: a mãe vive até aos 100 anos e eu fico. A partir de certa altura os caderninhos já eram muitos, e a bolsa acabou...

P.- Os caderninhos começam logo em 1993? R.- Os apontamentos começam em 1993, noutros cadernos, em papéis.

P.- Antes não escreveu?

R.- Escrevi coisas que destruí. Um romance chamado "Benvinda e os Outros", que destruí, uma série de coisas que destruí.

P.- Quer dizer, nunca parou de escrever, de facto.

R.- Não. Fui sempre escrevendo. Pelo menos fui sempre armazenando. Como fui vendo sempre a realidade em termos de literatura, o que é defeito meu, porque muitas vezes subestimo, outras vezes sobreestimo as pessoas, e os sentimentos das pessoas. É sempre uma alienação, uma fuga - protejo-me de que seja uma falta de respeito. Ao ver assim essa realidade, sempre, eu guardo-a já transformada em literatura na minha cabeça. Daí dizer que estou sempre a escrever. Vivo intensamente o real, mas o que armazeno é já literatura.

P.- Esta casa onde vive era para quê?

R.- Para o recepcionista do convento, junto do portão. Aliás é o que faço muitas vezes, comandar o portão.

P.- Nunca chegou a haver recepcionista.

R.- Não. Fiquei. Vivi como sempre costumava viver. Se compro uma camisa, tenho de deitar outra fora.

P.- Todas as suas coisas cabem numa mochila?

R.- Mais os bolsos de trás dos jeans... [ri-se] A sério.

P.- Não tem bens?

R.- Depois obtive um, comprei a ruína de um moinho. Com o dinheiro dos direitos e da bolsa, fui gerindo. Custou-me 600 e tal contos. Todos os anos tenho uma economia e faço mais qualquer coisa, até que cheguei ao luxo de lhe pôr aquecimento por 1500 euros.

P.- Que neste caso é uma necessidade absoluta.

R.- Só em quatro dias do Verão é que não é frio. De noite é sempre, e um moinho junto a um ribeiro é sempre húmido. Foi assim que fui fazendo a minha vida. Com a bolsa e os direitos de autor. Um tipo de escrita muito fragmentada porque era o meu tipo de vida. Fazia sol, qual escrita. Se estava muito vento, muita chuva tinha que ir desviar a água. Sair com as ovelhas, os patos, aquilo tudo, a defesa das raposas.

P.- Se havia sol fazia o quê?

R.- Nada. Andar. E nesse andar de repente chegava-me uma imagem qualquer.

P.- Andar pelas montanhas.

R.- Sim, a pé conheço tudo até Caminha, Vilar de Mouros. Uma vez saí de manhã, eram sete, à procura de um cão que tinha desaparecido, bati aquelas montanhas todas, mais tarde também o meu burro...

P.- Sozinho?

R.- Sozinho. Fui criado assim. Em Luanda a gente andava de pé descalço. A partir de certa altura comecei a rasgar menos e a achar, se calhar estupidamente, "isto não está nada mau". Se não, era como uma máquina de triturar papel. Escondo e vou ler seis meses depois. Porque quando se escreve fica-se apanhado pela própria euforia e tudo nos parece bom. Depois volta-se lá e está torto como o Diabo.

P.- Mostrava a alguém? R.- Não. Só dialogo comigo próprio.

P.- É de uma segurança isso...

R.- Não sei se é segurança, se é insegurança.

P.- De uma autonomia, não?

R.- Autonomia, sim. Faz parte do meu carácter. Sempre tive que me virar sozinho. Acabei por ficar mais solitário do que gosto de ser... Não percebe pela conversa que não gosto de ser solitário? Acabo por conversar muito, mas depois retraio-me, meto-me na minha concha. Pronto, foi assim que fui escrevendo. E depois a pressão, também... ah o Luandino nunca mais escreveu, caiu, está morto...

P.- Em Angola ou Portugal?

R.- Angola e Portugal. Pensei que ia querer morrer em paz. Pouco a pouco todos me esquecerão e tudo esquecerei. Mas não. Manteve-se aquele interesse.

P.- Que também correspondia à sua vontade, estava a querer escrever.

R.- Mas isso também porque por muita música que ouvisse, e memórias e um pouco de convívio, a certa altura o tempo é grande de mais. E vai de escrever. Em certos momentos dá um certo prazer. Tenho uma história que vai sair no segundo volume dos guerrilheiros de que gosto muito - uma pequena biografia de um guerrilheiro verdadeiro, que transformei em personagem -, e volto regularmente a ela porque estou sempre desconfiado, para ver se o que sinto quando a leio contém o mesmo tipo de entusiasmo. Se o Deus que está cá por dentro se mantém. E se sim, como não mostro, é a marca que tenho para mim. A última vez que a li chorei. SUBTÌTULO: Elogio a José Eduardo dos Santos.

P.- Acaba de voltar de Angola. Não ia lá há...?

R.- 13 anos.

P.- Sentiu que estava em casa?

R.- Senti. Cheguei ao aeroporto, olhei, vi: "Eh pá, afinal saí daqui ontem. Muitas coisas já modificadas, mas a matriz... Conheci aquela cidade [Luanda] quando era só areia. De modo que por muito que se construa ou se modifique eu vejo sempre a raiz. Isso dá um sentimento de tranquilidade. E a realidade actual de Luanda é uma coisa fascinante e aterradora.

P.- Está sobrepovoada com os milhões de refugiados que não voltaram às suas terras.

R.- Nem voltam. É um problema de todas as cidades do mundo, decorrente deste movimento da urbanização do planeta. Não é nada específico de Luanda. Falei com alguns jovens que me disseram: "A tua cidade morreu. Esta, nós também não queremos. Agora, a que vamos fazer também ainda não percebemos bem." Em todo o caso, em Luanda, obras públicas é por todo o lado. Andei por todo o sítio, toda a cidade está a fervilhar, num momento de mudança para outra cidade, moderna, igual a todas.

P.- Tem uma casa lá?

R.- Tenho. Ficou com uma das minhas ex-mulheres e está recuperada. E o sítio está melhor. E a União dos Escritores também. Há um elemento, que é o trânsito excessivo. Nesse sítio da minha casa havia tanto carro que não vi muito bem tudo o que tinha sido feito de arruamento, ajardinamento, limpeza. Não estava assim quando saí, e agora quase que não via.

P.- Saiu de Luanda?

R.- Fui ao Lubango, de que gostei muito, a Benguela, e parei no Huambo só para respirar o ar do planalto. Gostei de ver as fazendas que estão fazendo no Lubango. Outra organização da agricultura. Vi, por exemplo, uma plantação de 250 mil laranjeiras! , o que me deu ideia de que a vida retomou o seu caminho normal, noutro contexto, em que as coisas são feitas de outra maneira, quatro anos depois da guerra... são quatro?, tudo começou a mexer, está em contínua mutação, e é muito acelerada, porque há recursos, e há energia social que estava reprimida, retida. Por causa da guerra, as pessoas não se podiam deslocar. E agora, de repente, começou tudo a andar.

P.- E qual é a sua visão do Governo?

R.- Que faz aquilo que é possível fazer naquela situação. Aliás os governos de Angola têm sido sempre assim.

P.- Faz aquilo que é possível fazer pelo povo?

R.- Depende do modo como se olhar para isso. Se se olhar do modo mais estratégico, é verdade que as diferenças de rendimento, de nível de vida, são gritantes, como todas as sociedades em desenvolvimento, vêem-se a olho nu.

P.- E a grande riqueza de Angola pode ser a sua tragédia, ou não?

R.- Ter riqueza nunca é uma tragédia. P.- No sentido em que suscita uma violência que tem a ver com a forma como o dinheiro se move, com a corrupção, tudo isso?

R.- O dinheiro move-se segundo regras e leis internacionais. O dinheiro de Angola não é isolado do dinheiro do mundo. Grande parte do que se passa é ditado pelas regras de funcionamento do capital a nível mundial. E, não vou dizer da exploração, mas da presença dos detentores desse capital, ou dos que ordenam o modo como pode ser utilizado, nos países onde são extraídas essas riquezas fundamentais para o mundo desenvolvido.

P.- O governo não podia fazer mais do que faz?

R.- Ah, sim. É sempre possível fazer mais. Agora, não sou eu, simples cidadão sem conhecimento aprofundado da realidade, que vou discutir a opção tomada por exemplo de privilegiar os investimentos em infra-estruturas rodoviárias. Quer saber se acho que os angolanos vivem bem? Não vivem bem. Podiam estar a viver melhor? É muito possível, mas já estiveram a viver muitíssimo pior.

P.- E como é que vivem os líderes? R.- Eu não vi. Só fui almoçar com um velho amigo, com quem partilhei anos e anos de campo de concentração, uma pessoa extremamente conceituada. E encontrei a mesma casa que sempre lhe conheci, vivendo da maneira simples como sempre vi, recebendo-me com os netos e os filhos, e cada um sentando-se na mesa quando queria. O modo que ele teve de me demonstrar a sua alegria era que o almoço era inteiramente feito com as nossas coisas. Feijão de azeite de palma, e isso tudo.

P.- Quem era?

R.- O escritor Uanhenga Xitu. Que refiro, porque foi das coisas mais reconfortantes que tive neste visita. Porque obviamente muita gente dizia: "Ah, está tudo muito modificado, há pessoas que nem já conhecemos.. ." Mas foi como sempre o conheci. E é uma pessoa, mesmo em termos políticos, de muita, muita influência. Também não posso tirar conclusões, em três semanas, viajando de um lado para o outro, esse tipo de conclusões não seria legítimo tirar.

P.- O que é que as pessoas lhe disseram de como estava o país?

R.- Umas bem, outras mal. Mas é interessante: as que continuam a dizer bem eram as que diziam bem, e as que dizem mal são as que já desde... Portanto há aí também uma parte que é ditada...

P.- Por divisões políticas? R.- Não, pela vontade que as pessoas têm de ver as coisas hoje, amanhã, depois de amanhã, de acordo com aquilo que sonharam, que gostariam de ver construído, ou das coisas em que participaram e falharam, e gostariam de ver agora não falhadas. Esse é o tipo de pessoas com quem convivo. Portanto, a minha visão é muito inquinada. Muitas vezes quando se diz: "Está mal, é a desilusão própria que está a falar." Em termos de reconhecer que eles próprios falharam. Eu próprio falhei.

P.- Estou a tentar imaginá-lo a voltar ao seu país e a ver o que é feito da independência pela qual lutou, 30 anos depois, a riqueza que existe na classe que tem o poder. Como é que um homem que vive como o senhor vive, que fala do dinheiro como fala, olha para isso?

R.- Com toda a serenidade.

P.- Achando que é natural, inevitável?

R.- Não sei se é natural. Se a realidade é essa, é porque é inevitável.

P.- Isso também é uma confissão de derrota, não?

R.- Não é derrota. É a confissão da pessoa que em 1975, 76, 77, pensava que era possível construir uma sociedade um pouco mais justa. Só isso.

P.- Afinal não era possível?

R.- Era. Se tivéssemos a capacidade de só nós a construirmos, mas, eu pelo menos, não tinha percebido que isso só se faz com os outros todos, e os outros todos não eram só os meus colegas. Eram os americanos, eram russos, eram sul-africanos. .. Só estou a falar da minha experiência. Não sou uma pessoa desiludida, porque nunca tive ilusões.

P.- Em Angola, no lançamento do livro, pediu desculpa pelos seus pecados.

R.- Sim, porque os meus colegas e amigos durante 13 anos sempre insistiam: porque é que ele não volta? E eu: "Calma, agora estou a fazer isto, sou muito lento." Mas percebo que para alguns isso foi uma ofensa. Ou lhes criei alguma dificuldade. Que tomaram isso de modo pessoal, ou como ofensa colectiva, por exemplo ao colectivo de escritores, ou de uma maneira pouco patriótica. Peço desculpa por ter provocado isso, agora não podia fugir à minha natureza, ou ao meu direito de viver como a mim me apetece.

P.- Um escritor pode ter uma missão política? Como revolucionário o senhor lutava por um ideal, tinha um objectivo.

R.- Mas o meu ideal não era de tipo utópico. Por exemplo, estou muito tranquilo e feliz nestes 31 anos de independência, porque o que era fundamental foi salvo.

P.- O que é que era fundamental?

R.- A independência política. Ninguém a beliscou, muito embora tenham tentado e se continue a tentar. O jogo político no mundo é esse, limitar a independência dos outros. A integridade territorial. Em certa altura da guerra, das guerras de invasão e depois da guerra civil que se generalizou, na mente e nos relatórios de muita gente estava a partição de Angola em bocados. Aliás, Angola, quando proclamou a independência, foi invadida pelo norte e pelo sul, não era para mais nada, era para partir. Não houve uma beliscadura. E a consciência de angolanos. A consciência nacional, que se reforçou. Mesmo com esta terrível guerra dos últimos anos. As pessoas terão motivos de ódio, é um país estilhaçado, mas se perguntarem se são angolanos... Os angolanos passam para o exterior, e aqui em Portugal já várias vezes me acusaram disso: "Vocês são muito arrogantes." E eu digo: "Não, só temos é uma alta auto- estima." E isso ficou. Se estas três coisas em 30 anos não têm valor... Uma consciência nacional muito forte - e viu-se, no campeonato [do mundo] de futebol. Integridade territorial e independência política. Isso dá-me serenidade e confiança para o futuro.

P.- O que é que falta? Democracia?

R.- Democracia, democracia.. . isso. Não sei se falta, se há a mais.

P.- Qual é o regime em que acredita?

R.- Não acredito em nenhum. Um regime é uma coisa perfeitamente transitória. Os homens desenvolvem formas de se auto-governarem conforme as necessidades. São sempre circunstancialismos que determinam isso. Hoje o mundo tem esse modelo, a democracia. E viu- se por exemplo o que deu tentarem impor a democracia no Iraque.

P.- O regime democrático é o ideal?

R.- Não é um regime ideal. É em certas situações aquele que promove mais facilmente e com menos custos a felicidade das pessoas.

P.- Hoje o que Angola tem é uma democracia? É o quê?

R.- Um regime de transição. Aliás, como se pode exigir uma democracia num país que vem de guerra há 30 anos? O Banco Mundial exige, e o Fundo Monetário exige! São exigências que eles próprios sabem que não podem ser cumpridas. Democracia, no sentido formal que lhe dão no Ocidente.

P.- Dê-me o exemplo de um grande estadista.

R.- Nelson Mandela.

P.- E depois? R.- Depois... Acho que o Che não devia ter feito a última parte da vida.

P.- A última parte começa onde?

R.- Quando aceitou ser ministro.

P.- Não falou em Agostinho Neto.

R.- Sabe porquê?... Pescava com ele. E o tempo que passou até hoje ainda não definiu muito bem a estatura dele.

P.- Há pouco quando andávamos ali no campo mostrou os dois maiores eucaliptos das redondezas, que baptizou Nelson Mandela e Agostinho Neto. O que está a dizer é que a avaliação histórica de Agostinho Neto não é assim tão clara para si?

R.- Não. É mais clara. A minha avaliação é que com o tempo é que se vai ver a grandeza de Agostinho Neto.

P.- Para si, não diminuiu.

R.- Pelo contrário. Só que foi sempre uma pessoa muito discreta e muito pouco auto-centrada. E as acções do estadista não têm o que hoje se chama o brilho. O pensamento de Agostinho Neto é muito profundo. Só avaliando as palavras e as acções é que podemos avaliar a importância dele - para a nação angolana. Mas, por exemplo, em termos de estadistas, um que é no mínimo altamente controverso é o nosso actual presidente.. .

P.- José Eduardo dos Santos.

R.- Para mim não é rigorosamente nada controverso. Porque acho que poucos estadistas, tendo recebido o que ele recebeu, na altura em que recebeu, seriam capazes de terminar com o que ele conseguiu. Aquilo que era importante, fundamental e estratégico foi mantido. E podem agora a nação angolana, o povo, os dirigentes, partir para o futuro de maneira mais tranquila. Porque a soberania, a independência, as fronteiras, a unidade nacional estão. Este capital foi devido, realmente, à actuação de Eduardo dos Santos. Só que como é um estadista discreto e tem um pensamento muito estratégico, muitas vezes as acções da sua política só são entendidas mais tarde. Uma devoção total ao cargo que recebeu em 1979, era um jovem.

P.- Uma devoção?

R.- Sim, devoção à ideia que tem de como construir a Angola em que ele participou desde o início.

P.- Tem havido uma série de denúncias internacionais em relação a matérias que têm a ver com corrupção, para não já não falar da liberdade de expressão, de uma série de mecanismos da democracia. Tudo isto não ensombra a sua visão de José Eduardo dos Santos?

R.- Não. As questões de corrupção são sempre de grau. Em todo o mundo. Angola, fatalmente, está sob o olhar, sobretudo, da comunicação social portuguesa. Não podia ser de outro modo, o que ficou do passado comum e o que há no presente comum fatalmente originam esses holofotes em cima de Angola. Não é em cima da Guiné ou de São Tomé.

P.- Acha que a comunicação social portuguesa persegue o regime angolano?

R.- Não é perseguir. Há uma espécie de fixação em Angola e portanto tudo o que se passa é visto à lupa. E isso faz com que não havendo o mesmo tipo de atenção em relação a todos os outros países, e ao próprio, a visão que se dá, não estou a dizer que é falsa, é distorcida. É fruto de uma atenção desigual. Se quer uma imagem: passa um elefante e as pessoas dizem: "Ah, vai cheio de pulgas..." Em vez de: "Oh, é um elefante!", não: "Leva pulgas." Em termos cristãos, há pouca indulgência. São muito indulgentes em relação a outras realidades. Mas é assim, os irmãos, geralmente.. .

P.- Como é que consegue fazer essa avaliação tendo vivido os últimos 13 anos aqui em Portugal?

R.- Recebia todos os jornais e quase todos os dias falava com pessoas. Portanto, nunca estive a viver aqui, estive a viver lá. E aqui, minimamente, entra-me a comunicação social.

P.- Como olha para a literatura angolana? Ruy Duarte de Carvalho, por exemplo?

R.- Um grande escritor, Esse, por exemplo, merecia, muito antes do Luandino, o Prémio Camões. Escreve num português fantástico, uma coisa bela, mesmo. E é um intelectual polifacetado, cinema, artes plásticas, a sua formação de antropólogo, aquele apego à terra, tudo isso faz dele um escritor extremamente original ao ponto de baralhar os géneros.

P.- José Eduardo Agualusa.

R.- Tem o mérito de se concentrar naquilo que ainda está quente. De pegar nas questões quando elas ainda não são muito claras, e portanto arrisca. É um escritor de risco.

P.- E que resultados esse risco tem?

R.- Alguns livros são bons, outros não gosto nada.

P.- Gostou de "Estação das Chuvas"?

R.- Gostei. Não li os dois últimos.

P.- Passando para Moçambique. Tanta gente disse que era pai de Mia Couto.

R.- Não sou pai de ninguém. O Mia seguiu o mesmo caminho que eu quando começámos, quando descobrimos a vocação literária. Ele teve também a possibilidade de ler o Guimarães Rosa. Se foi alertado para isso por que eu o disse não altera nada.

P.- De Angola há mais alguém de quem queira falar? R.- O Manuel Rui tem um belíssimo romance, "Rio Seco". O Pepetela continua a seguir a sua linha em que o olhar crítico é temperado pelo facto dele ser professor de sociologia. O Uanhenga Xitu é pena que não tenha continuado a escrever naquela linha que conhece tão bem, rural, da linguagem do povo. Arnaldo Santos, que é um grande poeta e romancista.. .

P.- E em Portugal? R.- Penso que o último livro que li foi da Agustina. Os livros são muito caros e o meu tempo também não é... O que ando a ler... [tira um exemplar no original de "Where I Lived and What I lived for", de Henry David Thoreau, o autor americano do século XIX que experimentou viver nos bosques].

P.- Muito apropriado.

R.- Na Fnac, só tenho meia dúzia de tostões, o que vou comprar? P.- Mas o Thoreau desistiu da vida nos bosques. Acha que agora podia viver numa cidade?

R.- Posso. Eu vivo, crio, muito metido em mim. A cidade é o sítio ideal para as pessoas estarem só. Aqui não. Aqui nunca se está só.

P.- Voltou de Angola uma semana antes do que previra. Já estava com vontade de ficar. O que é que o impede?

R.- Minha mãe faleceu, tenho que arrumar as coisas todas [em Portugal]. Por um lado sou muito lento e preguiçoso e por outro tanto faz ir este ano como para o ano. Se o meu neto for para a universidade em Capetown, obviamente vou para Luanda. O meu neto é que insiste. 13 anos não é nada mas a gente arranja até laços de amizade que não se desfazem. Não é pegar na mochila e vou, isso faço sempre. Mas por muito que use o sistema de só comprar um livro quando já li e ofereci outro, acabei por acumular coisas.

P.- Os livros que foi lendo ofereceu-os todos?

R.- Ofereço-os, quando são livros que merecem, dou a alguém, ofereço à biblioteca do convento. Alguns que estão aqui são do meu neto. Meus mesmo são aqueles de capa vermelha que fui encadernando, que é a História de Angola e pouco mais. Assim como os discos, que são dois ou três. Desde que tenha Bach, o resto pode ir às urtigas.

P.- Isso é invejável. Está sempre pronto para partir. R.- Isso estou sempre. E por isso talvez é que não tenha urgência.

Nota do editor:

Luandino Vieira é o nome literário de José Vieira Mateus da Graça, nascido em Vila Nova de Ourém em 1935. Tendo-se mudado para Angola com três anos, viria a empenhar-se na luta de libertação da antiga colónia portuguesa. Em 1964, depois de o seu livro “Luuanda” ter recebido o prémio da Associação Portuguesa de Escritores, foi preso pela PIDE, condenado a 14 anos de cadeia e detido durante oito anos no campo de concentração do Tarrafal, na ilha de Santiago, em Cabo Verde. Após a independência de Angola, Luandino adoptou a nacionalidade angolana e foi presidente da Televisão Popular de Angola e da União de Escritores Angolanos, mas abandonou o país durante a década de 1990. A 24 de Maio deste ano, Luandino Vieira, que vive "completamente despojado dos bens materiais" tornou-se na segunda pessoa a recusar, razões pessoais" e "íntimas", o prémio “Camões”, um importante galardão atribuído em Portugal nos últimos doze anos no valor de 100 mil euros. Ele próprio exagerou as notícias da sua morte. Quer dizer, declarou- se um escritor morto, e não foi há muito tempo (numa entrevista em 2003). De José Luandino Vieira, o mítico autor de "Luuanda" - o livro que levou a PIDE a escaqueirar a Sociedade Portuguesa de Escritores e a prender o júri que o premiara com o grande prémio de novelística em 1965 - não se tinha livro novo há mais de 30 anos. O recente "O Livro dos Rios" (Caminho), anunciado como primeiro da trilogia "De Livros Velhos e Guerrilheiros" , quebrou esse silêncio. Que, de facto, foi só para fora, como Luandino afinal diz, e mostra, na sua mesa de escrita, com vista para o rio Minho. Há 13 anos que vive no cimo do monte sobre Vila Nova de Cerveira, nas terras do antigo Convento de Sampaio, do seu amigo escultor José Rodrigues. Neste quase Inverno de tanta chuva, a água brota do muito verde por todas as partes, o ar é alto, tudo cheira a terra. José Luandino Vieira, 71 anos que ninguém lhos dava, começou por plantar esta cerejeira que já vai mais alta que dois homens. E a sua casa é isto. A salinha para onde se entra, que também é cozinha e lugar de escrever, um quarto quase nu, uma pequena casa de banho. Aqui aconteceu a primeira parte de uma longa conversa continuada em Lisboa.



publicado por jambros às 02:29
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Quinta-feira, 14 de Dezembro de 2006
Simbólica de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Parte I)

                                                      Por: Leopoldo Amado

O denominado Massacre de Pindjiguiti apresenta-nos como bom exemplo para se ilustrar a complexidade referida, na medida em que, não obstante inéditos e importantes, os factos relatados como fazendo parte da sua decorrência apresentam-se-nos também, à jusante e a montante da ocorrência, como factores limitativos à uma abordagem com horizontes mais abrangentes. Efectivamente, reportando-nos ao período que, à jusante do processo que o antecedeu Pindjiguiti, temos de convir que este não foi senão um marco, uma referência e, muito provavelmente, o cumulativo e o auge de um sentimento que se expressou como se expressou – violentamente, é certo –, pese embora também o facto de se possível discernir suficientes elementos à montante da ocorrência, elementos esses que, tanto quanto possível, podem ajudar-nos a conferir uma interpretação histórica à fenomenologia que, por comodidade, designaremos doravante por Pindjiguiti.

 

 

Panfleto do PAI após Pindjiguiti

 

Convenham-nos então de que Pindjiguiti, isto é, o fenómeno considerado enquanto tal, é deveras tributário de inúmeros acontecimentos que o antecederam, desde os mais longínquos aos mais próximos, uns e outros variando em função da longevidade, intensidade e/ou projecção que tiveram no imaginário colectivo guineense. Assim, independentemente das influências exteriores e dos ulteriores desenvolvimentos no plano internacional que directa ou indirectamente desembocaram no “boom” das independências africanas em 1960, o povo guineense sempre resistiu à colonização. Atestam-no, entre outros aspectos, a denoda resistência oferecida a ocupação colonial portuguesa que, iniciado nos finais do século XIX, prolongou-se praticamente até a ao início da segunda metade do século XX, mediando, assim, pouquíssimo espaço de tempo entre o final do período da resistência à ocupação e o da emergência do embrionário nacionalismo guineense que – coincidente e curiosamente -, surge concomitantemente no preciso momento em que o poder colonial também tinha acabado de criar as condições mínimas para iniciar a extensão da administração a maior parte do território.

 

 

O efeito multiplicador da actuação dos nacionalistas guineenses esteve por detrás da primeira greve revolta do marinheiros, ocorrida em 1957, no caís de Pindjiguiti, em Bissau, greve essa, de resto, bem-sucedida, na medida em que esses marinheiros viram satisfeitos grande parte das reivindicações a ponto de a mesma vir posteriormente a potenciar, pelo precedente aberto (mas igualmente por acção de elementos do MLG), a grande greve que ocorreu em 1959, no mesmo local, a 3 de Agosto, na qual foram mortos cerca de 50 marinheiros, tendo ficando gravemente feridos cerca de uma centena [1] Há várias versões sobre a natureza das ocorrências e sobre a amplitude da repressão colonial no incidente de Pindjiguiti, embora exista una­nimidade quanto ao essencial: os trabalhadores do porto de Bissau reuniram-se para reclamar melhores condições salariais e de trabalho, mas a reunião foi consi­derada ilegal. Em face do volume dos reclamantes e ao calor das reclamações, foi decidido fazer intervir a polícia, mais tarde reforçada com tropas.

 

Com as duas reivindicações de Pindjiguiti e essencialmente da última, populariza-se rapidamente a ideia de uma luta comum contra o colonialismo português, apostando inicialmente o PAI em pequenas reivindicações como, por exemplo, a tentativa de eleger os seus membros no sindicato dos trabalhadores, acções essas que rapidamente os forneceu ensinamentos de que não eram com pequenas reivindicações urbanas (onde o inimigo tinha mais força) que se podia fazer evoluir, pelo viram-se na contingência de estender a luta às classes sociais menos favorecidas, nomeadamente os assalariados e, posteriormente, o campesinato. É neste quadro que o denominado massacre de Pindjiguiti apresenta-se-nos como um marco à jusante do processo que o antecedeu como uma referência e, muito provavelmente, o cumulativo e o auge de um sentimento que se expressou como se expressou – violentamente, é certo –, pese embora também o facto de se possível discernir suficientes elementos à montante da ocorrência, elementos esses que, tanto quanto possível, podem ajudar-nos a conferir uma interpretação histórica à fenomenologia que, por comodidade, designaremos doravante por “Pindjiguiti”.

 

É certo, outrossim, que acontecimentos tal como a Segunda Grande Guerra e suas ressonâncias na Guiné, diminutas que foram, contribuíram igualmente para que o povo guineense começasse a questionar o seu papel e o seu lugar na História e no Mundo. Aliás, Rafael Barbosa lembra-se de os jovens de Bissau se terem posicionado durante a segunda guerra mundial do lado dos Aliados contra a Alemanha de Hitler, seguindo com entusiasmo e acrescido e interesse os media internacional (sobretudo a BBC e Voz da América) o evoluir dos acontecimentos no teatro das operações, tal a suspeita que alimentavam de que a neutralidade que Portugal dizia manter era dúbia ou mesmo falsa., pois era evidente o apoio subtil que Portugal conferia a Alemanha de Hitler. No entanto, por si só, esta atitude dos então jovens pré-nacionalistas estava ainda longe de levar-nos a aferir da existência, nessa altura, de uma crença ou da antevisão, segundo a qual, jogava-se também, de certo modo, o futuro dos povos das colónias africanas com a Segunda Grande Guerra.

 

Estava-se na Guiné, isso sim, perante manifestações libertárias, mas algo difuso, tanto mais que junto aos "grumetes" e elementos da pequena burguesia local, o ideal libertário bifurcava-se também numa vontade oculta de ascensão na sociedade e estruturas coloniais. Vivia-se, convenhamo-nos, naquilo a que hoje se convencionou denominar-se protonacionalismo ou pré-nacionalismo, apesar de que, na década de "40" do século XX, essas aspirações libertárias quase apenas se manifestarem como contraponto da exploração imposta pelo desumano e repressivo aparelho colonial e, só residual ou subsidiariamente, como resultante de uma hipotética influência ou impulso importado do movimento das ideias e aspirações libertárias que já se fazia sentir no plano africano e até internacional, mormente através do movimento pan-africanista, cujas ressonâncias – não obstante terem a chegado a Guiné desde 1910, com a fundação da Liga Guineense –, não tiveram nem continuidade e nem expressão assinalável, tal a repressão que o temerário Teixeira Pinto (autrement conhecido pelo epíteto de “o pacificador”) engendrou contra os seus membros mais activos da Liga Guineense e que acabou posteriormente por ditar a sua proibição em 1915.

 

Para lá do ambiente gerado pela longa e penosa guerra de ocupação colonial (“pacificação”), que durou oficialmente até 1936 (se bem que várias importantes revoltas foram aqui e acolá assinaladas até aproximadamente 1950), o relacionamento entre o aparelho colonial e as populações guineenses eram, no geral, bastante hostis. Inclusivamente, em 1942, toda a estrada de Plubá foi aberta pelos prisioneiros que, na maior parte dos casos, não quiseram ou não puderam pagar a "daxa" ou o imposto de palhota. Durante todo o período que durou a Segunda Guerra Mundial, no tempo do Governador Vaz Monteiro, "havia em Bissau, Safim e Quinhamel algo que em muito imitava os campos de concentração na Alemanha do Hitler. O maior assassino era o administrador de Bissau, António Pereira Cardoso, que veio a ter aqui preso o Benjamim Correia. A partir daí, o filho da Guiné tomou consciência de que havia que lutar pela sua causa [2]”.

 

No início, a pequena burguesia organiza-se num quadro africano, mas cujo fim não é ainda a independência nacional. Trata-se de mais um desejo confuso de encontrar o seu lugar, de emergir socialmente. Mas a dominação portuguesa não é ainda contestada, a aspiração a assimilação mantém-se, nesta etapa, largamente espalhada. Isto apesar de alguns elementos da elite guineense serem já sensíveis a uma “reafricanização”. A prova eloquente disso é o facto de a maior parte dos "notáveis" guineenses da sociedade colonial pertencerem ao Conselho Legislativo do Governo da Guiné, tal como Mário Lima Whanon (comerciante), Dr. Augusto Silva (advogado), Joaquim Viegas Graça do Espírito Santo (aposentado e comerciante residente em Bafatá), Dr. Armando Pereira (advogado), Benjamim Correia (comerciante), Carlos Domingos Gomes (comerciante) e Dr. Severino de Pina (advogado).

                  

                  Dr. Augusto Silva (advogado)

À estes juntaram-se outros guineenses pertencentes à pequena burguesia, sendo de reparar a participação de cabo-verdianos e portugueses que, na altura, eram claramente anti situacionistas. Este grupo, que não escondia igualmente as suas pretensões de ascensão na sociedade colonial, dava também, paradoxalmente, o seu inequívoco apoio ao emergente nacionalismo guineense. Os notáveis desse grupo que se destacaram foram: Eugénio Rosado Peralta (industrial de pesca), Manuel Spencer “Tuboca” (comerciante) e Fernando Lima (comerciante), acusados de fomentarem a rebeldia entre os guineenses considerados indígenas, chegando mesmo alguns deles mais tarde a aderir aos ideais de libertação, embora sem nela tomarem parte activa.

 

Com efeito, a maior parte dos povos da Ásia tornou-se independente após a II Guerra Mundial. Em Outubro de 1946, com o fim de realizar a união de todos os africanos, realizou-se lugar em Bamako (Mali) uma reunião em que se fixaram os princípios do Ressemblement Democratique Africain (RDA), propondo-se a fusão de todos os agrupamentos e partidos democráticos de cada território num partido democrático unificado, passando o RDA a ser inicialmente dirigido por um comité de coordenação, apesar de que sempre se debateu ao longo dos anos com a unidade proclamada. No decorrer deste período, a acção das massas africanas, as organizações políticas e os seus dirigentes, impuseram nos territórios vizinhos, sobretudo nas colónias francesas, um certo número de realizações no campo económico e social que eles próprios consideraram positivas, pelo que a ideia da unidade das organizações políticas africanas na luta pela independência ganha novamente vulto entre essas mesmas massas e nas organizações não aderentes ao RDA.

 

As organizações que não aderiram ao RDA agrupam-se no MAS (Movimento Socialista Africano) e na Convenção Africana, esta animada por Leopoldo Sédar Senghor. Em 1957, foi criado o PAI (não confundir com o PAI de Amílcar Cabral), o qual lança a ideia da independência africana. Em Julho de 1958, verifica-se uma reunião em Paris dos principais dirigentes africanos, onde se reafirmou o princípio da unidade com vista à independência. Em Maio-Junho de 1958 a França atravessou uma grande crise, retomando os destinos do país o general De Gaulle. Este desloca-se a África e, no decurso da sua visita, declara que os povos da África sob dominação francesa podiam escolher entre responder “sim” e aceitar a sua Constituição que sob o nome da “Comunidade” substituia a chamada “União Francesa” ou responder “não”, caso em que o território se tornaria independente.

 

A maior parte dos territórios, confiantes nas promessas feitas, votou “sim”. Só a Guiné por votação popular realizada pelo PDG respondeu “não” em 28 de Setembro de 1958 à Constituição do General De Gaulle e, em 2 de Outubro, a sua independência era proclamada. Esse feito deveu-se sobretudo a acção do PDG (criado em Maio de 1947), sete meses depois do Congresso de Bamako, o qual resultou da fusão étnica das associações que na Guiné Conakry e especialmente à acção de Sékou Touré que dirigia o sindicato e era o secretário político do Partido. A República da Guiné adoptou uma bandeira tricolor – vermelho, amarelo e verde em que o vermelho simboliza a determinação do povo em aceitar todos os sacrifícios até ao derramamento do sangue, o amarelo a cor do sol e das areias de África e o verde a cor da esperança e da vegetação africana, cores estas que se encontram nas bandeiras de quase todos os países do Oeste africano, diferindo apenas a disposição.

 

Em Março de 1952, Cabral subscreveu em Lisboa uma exposição ao presidente da República em que, entre outras coisas, se reclamava a retirada de Portugal do Pacto do Atlântico. Seguidamente, desembarca em Bissau a 20 de Setembro de 1952, no navio Ana Mafalda, tinha ele 34 anos, após ter estado em Cabo Verde (1949), onde, segundo o próprio, fez "todas tentativas de acordar a opinião pública contra o colonialismo". Chegou a Bissau a sua primeira mulher a 2 de Novembro de 1952. Nesse ano, Amílcar Cabral sugeriu a formação de um clube de futebol apenas reservado aos naturais da Guiné, opinando que dentro do mesmo devia existir uma biblioteca para a elevação do nível cultural dos associados. Várias reuniões foram realizadas tendo também para a arrecadação de fundos sido efectuado um baile no bairro Chão de Papel. Nessa altura, Amílcar Cabral tentou, aparentemente sem sucesso, disfarçar as actividades políticas com a criação de um clube desportivo e recreativo de cujos subscritores da petição foram: o próprio Amílcar Cabral, Carlos António da Silva Júnior, João Vaz, Ricardo Teixeira, Pedro Mendes Pereira, Inácio Carvalho Alvarenga, Paulo Martins, Julião Júlio Correia, Martinho Gomes Ramos, Victor Fernandes, Bernardo Máximo Vieira. O aparente insucesso acabou todavia por insuflar a ideia de associativismo. Segundo Luís Cabral, " (…) o projecto de associação começava a tomar corpo e a ter aceitação, enquanto o Amílcar provava não estar disposto a recuar diante das dificuldades. E a denúncia surgiu (…)”. A não admissão neste clube de europeus acabou por gerar dissidências deixando os propósitos do seu mentor bem à vista: lançar as bases duma organização de nativos, irmanando-os na mesma fé e nos mesmos destinos. O Clube não chegou a ser autorizado, mas o certo é que ficou entre os nativos a ideia duma união entre todos.

 

Cabral foi contratado pelo Ministério do Ultramar como adjunto dos Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné até 18 de Março de 1955, data em que regressou à metrópole. Nessa altura, Portugal tinha o compromisso internacional de apresentar o recenseamento agrícola da Guiné e até então este trabalho não fora sequer iniciado. Depois de vários contactos de trabalho, particularmente nos momentos em que Amílcar Cabral exercia interinamente as funções de chefe de serviço, o governador decidiu confiar-lhe a execução daquela importante tarefa, na qual veio a ser secundado pela Maria Helena Rodrigues (recentemente falecida em Braga), sua esposa na altura. “Em cada tabanca deixava uma palavra como ele a sabia dizer, embora o povo só viesse a interpretá-la devidamente quando lá chegasse a palavra de ordem do Partido para a luta [3]". Assim, o recenseamento agrícola acabaria por permitir a Amílcar Cabral conhecer mais de perto as populações e os seus problemas, pelo que constituiu-se assim na antecâmara da mobilização urbana e rural que se lhe seguiram.

 

Com efeito, durante a sua permanência nesta cidade, diz uma notada PIDE, “o Eng.º Amílcar Cabral e a sua mulher comportaram-se de maneira a levantar suspeitas de actividades contra a nossa presença nos territórios de África com exaltação de prioridade de direitos dos nativos e, como método de difundir as suas ideias por meios legalizados, o Eng.º pretendeu e chegou a requerer juntamente com outros nativos, a fundação de uma agremiação desportiva e Recreativa de Bissau, não tendo o Governo autorizado”. A mesma nota dava ainda conta de que “ (...) eram anti-situacionistas o João Vaz, ajudante de mecânico, de 33 anos, natural de S. Tomé, Carlos António da Silva Semedo Júnior, de 21 anos, estudante, a estudar em Lisboa; Pedro Mendes Pereira, enfermeiro de 1ª classe de 52 anos, Inácio Carvalho Alvarenga, 42 anos; Julião Júlio Correia, de 50 anos de idade, Martinho Gomes Ramos de 35 anos, Victor Fernandes, de 30 anos, Bernardo Máximo Vieira, de 33 anos, tendo esses mesmos indivíduos assinado a petição referida no sentido da criação de um clube denominado clube desportivo e recreativo de Bissau, destinado ao desenvolvimento de actividades nativistas, superiormente orientadas pelo engenheiro Amílcar Cabral”.

 

As reuniões, presididas por Amílcar Cabral para esse fim, realizavam-se clandestinamente na casa de João da Silva Rosa (guarda-livros da NOSOCO). Nela tomavam parte Isidoro Ramos, João Rosa, Victor Robalo (agricultor em Bigimita), Martinho Ramos (empregado da Gouveia), José Maria Dayves, Elisée Turpin (empregado ao tempo da SCOA), Godofredo Vermão de Sousa (professor primário) e Crates Nunes (carpinteiro). Para suprir as necessidades recorrentes dessas actividades, foi nomeado tesoureiro Estêvão da Silva (Alfaiate). Foi com estes fundos conseguidos que financiaram as cópias dos Estatutos que Cabral elaborou e que depois levou a uma reunião para ser apreciado e aprovados, secundando este acto a constituição de uma comissão que os deveriam levar a aprovação do Governador. Essa Comissão foi então constituída por João Rosa, Victor Robalo e João Vaz (alfaiate) que igualmente não conseguiu a aprovação do Governo, justamente porque uma das claúsulas dos Estatutos aludia ao facto de que nesta agremiação não podiam tomar parte os europeus e caboverdianos, razão pela qual passou-se a dizer que Amílcar Cabral estava feito com os "grumetes".

 

Depois de 1954, alguns povos de África tornaram-se independentes. No Sul da Guiné, mais concretamente em 1956, registaram-se certas actividades dos nativos nas áreas de Cacine e Bedanda a favor do Ressemblement Democratique Africain, tendo-se mesmo formado o que apelidaram de “clubes de trabalho”, em quase todas as povoações vizinhas. Como resposta, as autoridades coloniais prenderam alguns responsáveis e deram perseguição a outros, pelo que estas acções foram desmanteladas. Em 1955, José Ferreira de Lacerda (que estudou em Coimbra e teria sido aluno de Salazar [4]), futuro patriarca e líder lendário do MLG, redigiu, a pedido de César Mário Fernandes e José Francisco Gomes (e assinada por várias pessoas)uma “representação” que foi entregue ao Presidente da República de Portugal, aquando da visita deste a então Província da Guiné, documento esse onde se condensava, segundo os seus subscritores, o essencial das aspirações da Guiné.

 

Paralelamente, nas eleições para membros do Conselho do Governo da Província da Guiné faziam parte dos elementos favoráveis aos candidatos da "oposição", os seguintes guineenses: Benjamim Correia, Armando António Pereira (advogado de 54 anos e candidato a membro do Conselho do Governo da Província), proposto pelo grupo de Benjamim Correia e constituído pelo branco Luís Mata-Mouros Resende Costa, 36 anos de idade, natural de Bissau, que nesse processo encarregou-se de expedir circulares, em colaboração Gastão Seguy Júnior, de 36 anos, oficial de diligências do Juízo de Direito da comarca, natural de Bolama. É igualmente digno de registo a existência, mais ou menos paralela, de outro grupo de nacionalistas que actuava sob a coordenação de Mário Lima Wanon e do qual faziam parte o Dr. Artur Augusto Silva, o Dr. Severino de Pina, Godofredo Vermão de Sousa, Victor Robalo, Armando António Pereira, Manuel Spencer e Crates Nunes. Embora as acções desenvolvidas nesta fase da luta fossem poucas, devido a feroz repressão e apertada vigilância da PIDE, o certo é que contribuíram para a mobilização em Bissau, particularmente as camadas ligadas à pequena burguesia local.

  

Victor Robalo em entrevista com Leopoldo Amado

 

A independência do Gana (1957) e as perspectivas da independência da Guiné Conakry e do Senegal (respectivamente, 1958 e 1959) rapidamente transformaram a predisposição latente de luta pela independência dos guineenses num entusiasmo difuso, alimentado pela expectativa imediatista duma libertação pacífica da Guiné, à semelhança do que ocorrera com os territórios africanos vizinhos. Coincidentemente, e sob o impulso de elementos directamente doutrinados por Amílcar Cabral, registou-se em 1957 uma primeira grande greve dos trabalhadores no cais de Pindjiguiti em Bissau, apesar de que é a independência da República da Guiné (Conakry) que iria doravante funcionar como o ponto de partida e o “leitmotiv” para um amplo movimento para a independência.

 

Chega-se assim aos inícios da década de 50 do século XX com um nacionalismo guineense já mais amadurecido, pois, nesse período, para além de toda a carga histórica e cultural herdada da resistência à ocupação colonial, este nacionalismo começou a ser directa ou indirectamente influenciado pela evolução política do Senegal e da Guiné-Conakry, apesar de que as organizações surgidas na altura terem um carácter incipiente, reflectindo todos eles um certo idealismo. O primeiro das organizações políticas a aparecer foi o MING (Movimento Nacional para a Independência da Guiné). António E. Duarte Silva ( "A independência da Guiné-Bissau e a descolonização portuguesa" , Afrontamento, 1997) atribui a paternidade da fundação do MING, em 1955 a José Francisco Gomes ("Maneta") e Luís da Silva ("Tchalumbé"), não obstante saber-se que o MING tinha por detrás a mão de Amílcar Cabral. Em qualquer dos casos, MING não teve propriamente acções conhecidas e nem grande projecção. Seguiu-se-lhe o PAI (Partido Africano para a Independência, fundado em 1956 por Amílcar Cabral (e que só se transformaria em 1962 em PAIGC), apesar deste partido ter sido forçado a experimentar um período de profunda hibernação entre 1956 e 1959, dado que o governador Peixoto Correia, depois de devidamente informado sobre as actividades de Amílcar Cabral, proibiu-o de estabelecer residência na Guiné, transferindo-o compulsivamente para Angola.

 

Portanto, é nesse hiato, em que as actividades do PAI quase desaparecem que é fundado em 1958 o MLG (Movimento para Independência da Guiné), uma formação política que integra sobretudo guineenses, nomeadamente os dignitários com que Cabral havia começado a trabalhar desde 1952 e que, entretanto, assumem ou pretenderam assumir a liderança do movimento pela independência. João Rosa, um dos líderes históricos do MLG lembra (segundo o seu auto de interrogatório na PIDE, datado de 1962) de ter integrado este movimento a convite de José Francisco Gomes e de ter participado na primeira reunião do MLG em princípios de 1958, na qual estiveram igualmente César Fernandes, Ladislau Justado Lopes, este último mobilizado por Rafael Barbosa, elemento esse que viria a revelar uma grande veia mobilizadora, chegando mesmo a protagonizar, entre 1959 e 1960, uma rotura que praticamente definhou a estrutura residual do MLG em Bissau, apesar de que, em jeito de révanche e antecipação ao PAI, o MLG desenvolveu, após a referida rotura, uma ou outra acção clandestina com o objectivo de demarcar-se publicamente do PAI, à exemplo do correio que enviou a todas as repartições públicas no dia 8 de Fevereiro de 1960, de resto, em tudo semelhante a “Representação” que o Lacerda produziu a pedido de César Mário Fernandes e José Francisco Gomes e que foi entregue ao presidente da República de Portugal em 1955, aquando da vista desta à Guiné.


Eram ainda da nata fundadora do MLG indivíduos como Tomás Cabral de Almada, Rafael Barbosa, Paulo Lomba, Aquino Pereira, Alfredo Menezes (originário de São Tomé) e José Ferreira de Lacerda, o patriarca do MLG e líder consensual deste movimento (tido desde 1948 como o líder do Partido Socialista Guineense), e que só não participou no acto da fundação do MLG porque, à data da sua consumação, encontrava-se em Lisboa, no gozo de licença graciosa, na qualidade de funcionário administrativo, tanto mais que, segundo palavras de Elisée Turpin, “(...) logo após a Segunda Guerra Mundial, uma organização que tinha como cérebro principal o guineense José Ferreira de Lacerda, funcionário público em Bolama, liderava um movimento que de alguma forma tinha influência no Conselho do Governo colonial, chegando quase a ganhar uma eleição para o provimento desse órgão, quando foi abafado e reprimido pelas autoridades coloniais (...) [5]".

 

 

Os autos de interrogatório de Isidoro Ramos (ainda vivo) na PIDE-DGS são indispensáveis  para se compreender e enquadrar as acções do MLG, pelo menos do período que se estende de 1958 ao Pindjiguiti. Nele, ele é taxativo ao lembrar-se ter visto, em princípios de 1958, um grupo de indivíduos em frente a Farmácia Lisboa (cuja proprietária, Sofia Pomba Guerra, era uma comunista desterrada pela PIDE-DGS para Moçambique e depois Guiné) que o abordaram sobre questões relativas a independência. Segundo este documento, Isidoro Ramos, lembra de ter participado numa reunião em que igualmente se encontrava Ladislau Justado Lopes (enfermeiro), Epifânio Souto Amado (empregado de armácia), César Mário Fernandes (empregado do tráfego do cais de Pindjiguiti), Rafael Barbosa ( “O Coxo”, ou o “Patrício”, oleiro da construção civil) e José de Barros (guarda-fios dos CTT). Para mais, Isidoro Ramos também referiu-se que ele teria sido abordado abordado por Ladislau Justado Lopes que o informou de que iriam formar um Movimento de Libertação e que estavam a ver que pessoas é que podiam ser admitidas, pelo que imediatamente anuiu ao convite no sentido de integrar aquele Movimento de Libertação, após ter sido informado pelo seu interlocutor de que Fernando Fortes (funcionário da Estação postal dos CTT) e Aristides Pereira (telegrafista dos CTT) também faziam parte desse grupo.

 

Salvo raras excepções, entre 1958 a 1961, numa amálgama inextricável, alguns destacados dirigentes do MLG e do PAI, indistintamente, partilharam, voluntária ou involuntariamente o mesmo espaço político, coincidindo essa fase com o período em que ainda se acreditava ser possível, a breve trecho, sobretudo da parte do MLG, o início do processo que havia de conduzir a Guiné "dita portuguesa" à independência. Na verdade, a criação em Bissau, em 1958, do MLG (Movimento de Libertação da Guiné), a par das perseguições das autoridades coloniais, constituiu-se no mais sério problema para os propósitos unitários que Amílcar Cabral postulava na Guiné, na luta contra o colonialismo português. O MLG, que desenvolvia acções numa perspectiva política pouco elaborada, cedo hostilizou Amílcar Cabral, a quem alcunhou pejorativamente de "cabo-verdiano". Este movimento acusava os cabo-verdianos de terem ajudado os portugueses na dominação colonial da Guiné e, perante a iminência de independência, pretenderem substituir os colonialistas. A miragem de uma independência prestes a concretizar-se, à semelhança do que ocorreu nas colónias francesas da Guiné "dita francesa" e do Senegal, precipitou nas hostes do MLG a tendência para a organização de um movimento que procurasse congregar no seu seio alguns poucos guineenses ilustres, dando assim primazia a necessidade de sublimação das inquietações mais personalizadas que colectivas, ao contrário do PAI,  relegando para um plano secundário a preparação para a luta armada e a estruturação do movimento em termos populares.

 

 

Rafael Barbosa, fotografado por Leopoldo Amado

Convenham-nos então de que Pindjiguiti, isto é, o fenómeno enquanto tal, é deveras tributário de inúmeros acontecimentos que o antecederam, desde os mais longínquos aos mais próximos, uns e outros variando em função da longevidade, intensidade e/ou projecção que tiveram no imaginário colectivo guineense. Assim, independentemente das influências exteriores e dos ulteriores desenvolvimentos no plano internacional que directa ou indirectamente desembocaram no “boom” das independências africanas em 1960, o povo guineense sempre resistiu à colonização. Atestam-no, entre outros aspectos, a denoda resistência oferecida a ocupação colonial portuguesa que, iniciado nos finais do século XIX, prolongou-se praticamente até ao início da segunda metade do século XX, mediando, assim, pouquíssimo espaço de tempo entre o final do período da resistência à ocupação e o da emergência do embrionário nacionalismo guineense que – coincidente e curiosamente –, surge concomitantemente no preciso momento em que o poder colonial também tinha acabado de criar as condições mínimas para estender a administração a maior parte do território.

 

Com efeito, Amílcar Cabral só regressaria a Guiné em Setembro de 1959, isto é, um mês após Pindjiguiti, mas não antes sem ter feito um verdadeiro périplo aos países africanos recém independentes (Congo Kinshasa, Gana, Libéria, etc.) junto dos quais começou discretamente a procurar apoio político e material para a luta de libertação nacional . Assim, a reivindicação a posteriori da paternidade de Pindjiguiti por parte do PAI (GC) só se pode compreender na medida em que tanto o MLG como o PAI partilhavam indistintamente, o mesmo espaço político, a mesma clientela, chegando mesmo muitos membros do PAI a serem concomitantemente do MLG e vice-versa, de resto, tendência essa que se acentua mesmo depois de consumada a rotura entre as duas formações políticas, sobretudo a partir do momento em que Amílcar Cabral, a partir de Conakry e Dakar, movido pelo imperativo da união na luta contra o colonialismo, passou a produzir e a expedir para Bissau inúmeros panfletos em que, à cautela, omitia de propósito tanto a sigla do PAI como a do MLG, para apenas se referir ao Movimento de Libertação da Guiné e Cabo-Verde, os quais, de resto, eram clandestinamente distribuídos em Bissau por elementos de filiação dupla, particularmente os que, não renegando o MLG em favor do PAI, tal como fez Rafael Barbosa, de alguma maneira permaneceram no PAI, sob a influência deste último.

 

Curiosamente, a PIDE-DGS só conseguiu reconstituir, através da sua rede de informadores em África, todos os passos de Amílcar Cabral neste périplo (itinerário, autoridades contactadas, assuntos versados, etc.), após a saída deste de Bissau. Porém, foi nessa sua meteórica passagem por Bissau (14 à 21 de Setembro de 1959) que Amílcar Cabral acordou com os seus correligionários que iria instalar a sede do exterior do PAI em Conakry, de onde enviaria directrizes e, a qual, doravante, se articularia com a do PAI no interior, esta última criado imediatamente depois numa palhota, Efectivamente, a decisão de Amílcar Cabral de escolher um poiso de apoio na Guiné-Conakry foi devidamente sustentada com o exemplo de Pindjiguiti, na medida em que, para ele, o massacre era a iniludível prova da natureza permanentemente violenta do sistema colonial que, sintomaticamente, tinha maior força nos centros urbanos, pelo que era preciso proceder à uma extensa e meticulosa mobilização dos camponeses e uma cautelosa preparação para a guerra de libertação, a fim de responder com violência à violência colonial. É essa linha de raciocínio que presidiu ao envio, a 15 de Novembro de 1960, de um Memorando a que Salazar que este nem se dignou responder, no qual propunha uma série de medidas "para a liquidação pacifica da dominação colonial", secundando-o também, na mesma lógica, a "Nota Aberta ao Governo Português", na qual, em jeito de "última tentativa para a liquidação pacifica da dominação colonial", reitera o teor do Memorando de Novembro de 1960, como adiante veremos.

 

[1] - O re­latório oficial dos acontecimentos, publicado na Província de Angola, em Agosto, indica sete mortos e 15 feridos. Amílcar Cabral, por seu turno, aponta para um "autêntico massacre", com mais de 50 mortos e 100 feridos. Segundo Luís Cabral, foi Fernando Fortes, chefe da Estação Postal de Bis­sau, quem meteu no correio, nesse mesmo dia, cópias de um comunicado elaborado sobre os acontecimentos, endereçadas às emissoras mais escutadas em Bissau. A Rádio Brazzaville, a Rádio Conakry e a Rádio Dacar transmitiram imediatamente a noti­cia.

 

[2] - Entrevista de Elisée Turpin a Leopoldo Amado, Bissau, Dezembro de 1997.

 

[3] - Entrevista de Aristides Pereira a Leopoldo Amado, Praia, Junho de 1998.

 

[4] - Entrevista de Rafael Barbosa a Leopoldo Amado em Bissau, 4 a 7 de Maio de 1995

 

[5] - Entrevista de Elisée Turpin a Leopoldo Amado, Bissau, Dezembro de 1997.

 



publicado por jambros às 14:52
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Simbólica de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Parte II)

 

                                 

                                 Por: Leopoldo Amado

No entanto, em Bissau, consumada que foi a ruptura entre o PAI e o MLG, este último Movimento de Libertação quase que desapareceu, vindo somente a ressurgir das cinzas no além fronteiras, a saber, em Dakar, Ziguinchor e Conakry, sobretudo após Pindjiguiti e as várias vagas de repressão (Abril de 1961 e Fevereiro de 1962) da PIDE-DGS que o secundou, assistindo-se doravante a emigração para esses países recém independentes de um número considerável de nacionalistas que assim optaram, seja na qualidade de emigrantes económicos, seja para darem continuidade às acções políticas, ou motivados pelos dois factores em conjunto. Apesar de se divisarem-se nessas correntes de emigração motivações que também se reportavam a um certo sentimento de concorrência entre os elementos do MLG e do PAI, onde era também possível descortinar um certo frenesim alimentado pela ideia imediatista da independência, sobretudo da parte dos primeiros.

 

Foram os casos de enfermeiros que fugiram para a Guiné-Conakry desde 1959 e que trabalhavam todos no Hospital “Ballay” como Paulo Dias (que veio posteriormente a ascender ao cargo de presidente da FLING-Combatente – uma das facções dissidentes da FLING), João Fernandes, Inácio Silva e Fernando Laudelino Gomes, tendo este último desempenhando as funções de locutor principal de um programa radiodifundido semanalmente na rádio Conakry sobre a Guiné "Portuguesa", o qual era alimentado por notícias que denunciavam as atrocidades do colonialismo português na Guiné, com base em informações que César Mário Fernandes e Rafael Barbosa enviavam clandestinamente para Conakry [6]. Foram ainda os casos de Ernestina da Silva, de Arnaldo Araújo, de Marcos Souto Amado e vários outros guineenses que desde os meados da década de 50, antes da independência deste país, se instalaram em Conakry (o caso dos Turpin, dos Silva, dos Correia, etc.). Nessa cidade, o médico angolano-santomense, Hugo Azancot de Menezes [7] (que também trabalhava no Hospital “Ballay” era quem enquadrava politicamente os jovens guineenses emigrados, os quais chegaram mesmo a criar o Mouvement pour l’indépendance des Territoires sous la domination colonial portugaise, cuja direcção, apesar de ser essencialmente constituída por guineenses, tal como o próprio nome indica, pretendia ser uma organização que congregasse todos os nacionalistas das colónias portuguesa de África num único movimento de libertação.

 

Convenhamos então de que Pindjiguiti, isto é, o fenómeno considerado enquanto tal, é deveras tributário de inúmeros acontecimentos que o antecederam, desde os mais longínquos aos mais próximos, uns e outros variando em função da longevidade, intensidade e/ou projecção que tiveram no imaginário colectivo guineense. Assim, independentemente das influências exteriores e dos ulteriores desenvolvimentos no plano internacional que directa ou indirectamente desembocaram no “boom” das independências africanas em 1960, o povo guineense sempre resistiu à colonização. Atestam-no, entre outros aspectos, a denoda resistência oferecida a ocupação colonial portuguesa que, iniciado nos finais do século XIX, prolongou-se praticamente até ao início da segunda metade do século XX, mediando, assim, pouquíssimo espaço de tempo entre o final do período da resistência à ocupação e o da emergência do embrionário nacionalismo guineense que – coincidente e curiosamente –, surge concomitantemente no preciso momento em que o poder colonial também tinha acabado de criar as condições mínimas para estender a administração a maior parte do território.

 

Com efeito, Amílcar Cabral só regressaria a Guiné “portuguesa” em Setembro de 1959, isto é, um mês após Pindjiguiti, mas não sem antes ter feito um verdadeiro périplo aos países africanos recém independentes (Congo Kinshasa, Gana, Libéria, etc.) junto dos quais começou discretamente a procurar apoio político e material para a luta de libertação nacional [8]. Assim, a reivindicação a posteriori da paternidade de Pindjiguiti por parte do PAI (GC) só se pode compreender na medida em que tanto o MLG como o PAI partilhavam indistintamente, o mesmo espaço político, a mesma clientela, chegando mesmo muitos membros do PAI a serem concomitantemente do MLG e vice-versa, de resto, tendência essa que se acentua mesmo depois de consumada a rotura entre as duas formações políticas, sobretudo a partir do momento em que Amílcar Cabral, a partir de Conakry e Dakar, movido pelo imperativo da união na luta contra o colonialismo, passou a produzir e a expedir para Bissau inúmeros panfletos em que, à cautela, omitia de propósito tanto a sigla do PAI como a do MLG, para apenas se referir ao Movimento de Libertação da Guiné e Cabo-Verde, os quais, de resto, eram clandestinamente distribuídos em Bissau por elementos de filiação dupla, particularmente os que, não renegando o MLG em favor do PAI, tal como fez Rafael Barbosa, de alguma maneira permaneceram no PAI, sob a influência deste último.

 

 

                             

                               Amílcar Cabral (Abel Djassi)

Curiosamente, a PIDE-DGS só conseguiu reconstituir, através da sua rede de informadores em África, todos os passos de Amílcar Cabral neste périplo (itinerário, autoridades contactadas, assuntos versados, etc.), após a saída deste de Bissau. Porém, foi nessa sua meteórica passagem por Bissau (14 à 21 de Setembro de 1959) que Amílcar Cabral acordou com os seus correligionários que iria instalar a sede do exterior do PAI em Conakry, de onde enviaria directrizes e, a qual, doravante, se articularia com a do PAI no interior, esta última criado imediatamente depois numa palhota, Efectivamente, a decisão de Amílcar Cabral de escolher um poiso de apoio na Guiné-Conakry foi devidamente sustentada com o exemplo de Pindjiguiti, na medida em que, para ele, o massacre era a iniludível prova da natureza permanentemente violenta do sistema colonial que, sintomaticamente, tinha maior força nos centros urbanos, pelo que era preciso proceder à uma extensa e meticulosa mobilização dos camponeses e uma cautelosa preparação para a guerra de libertação, a fim de responder com violência à violência colonial. É essa linha de raciocínio que presidiu ao envio, a 15 de Novembro de 1960, de um Memorando a que Salazar que este nem se dignou responder, no qual propunha uma série de medidas "para a liquidação pacifica da dominação colonial", secundando-o também, na mesma lógica, a "Nota Aberta ao Governo Português", na qual, em jeito de "última tentativa para a liquidação pacifica da dominação colonial", reitera o teor do Memorando de Novembro de 1960, como adiante veremos.

 

No entanto, em Bissau, se consumava  a ruptura entre o PAI e o MLG, este último movimento de libertação quase que desapareceu, vindo somente a ressurgir das cinzas no além fronteiras, a saber, em Dakar, Ziguinchor e Conakry, sobretudo após Pindjiguiti e as várias vagas de repressão da PIDE-DGS que as secundou (Abril de 1961 e Fevereiro de 1962), assistindo-se doravante à uma acentuada emigração para esses países recém independentes de um número considerável de nacionalistas, seja na qualidade de emigrantes económicos, seja para darem continuidade as acções políticas, ou motivados pelos dois factores em conjunto, apesar de também se divisarem motivações que se reportavam a um certo sentimento de concorrência entre os elementos do PAI e MLG,  além de um certo frenesim alimentado pela ideia imediatista da independência, sobretudo da parte dos primeiros, que se enraizaram sobretudo no Senegal entre os inúmeros refugiados guineenses ali instalados, calculado em cerca de 60 000 pessoas. Dakar acolheu ainda outras organizações tal como a UPG (União Popular para a Libertação da Guiné), a UPLG (União Popular para a Libertação da Guiné), o Ressemblement Democratique Africain de La Guinée (RDAG) que, desde 1956, fez propaganda no sul da Guiné, em especial na área de Cacine, para além da UNGP (União dos Naturais da Guiné Portuguesa).

 

Reportando-nos ao Pindjiguiti enquanto tal, importa sobretudo compreender que, à montante do ciclo encerrado da guerra colonial/guerra de libertação, ele simbolizou a irreversibilidade do processo nacionalista na Guiné, representando igualmente mais que uma mera reivindicação laboral cujos contornos escapou ao controle das autoridades que, em consequência, se viram na obrigação e na contingência de usar da força., pois à jusante do processo libertário guineense circunscreve-se também como um importante elo na cadeia de acontecimentos directa ou indirectamente a ele relacionados, pelo que não é e nem pode ser tomado como um acontecimento isolado, pontual ou circunstancial, tanto mais que o seu alcance simbólico engendrou um importante factor de consciencialização e um ponto de viragem decisivo no processo libertário da Guiné-Bissau. Para além do massacre de Pindjiguiti corresponder justamente a um momento em que a agitação clandestina atingia o seu ponto máximo, permitindo o seu violento desfecho, possui o condão de ter reforçado a consciência segundo a qual era necessário optar por outras formas de luta para responder com violência à violência colonial. Foi também o massacre de Pindjiguiti que permitiu, pouco depois (em Janeiro de 1960), a criação em Tunes da FRAIN [9] (Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional das Colónias Portuguesas) no decurso da Confe­rencia dos Povos Pan-Africanos.

 

É pois no quadro da FRAIN que Amílcar Cabral redigiu, em Londres, com o apoio da Fabian Society, uma brochura de apresentação do PAIGC intitulado Facts About Portugal's African Colonies, documento esse traduzido posteriormente em português e que denotava a determinação do PAI e de Amílcar Cabral em prosseguir os esforços de mobilização dos camponeses com vista à luta armada. Efectivamente, é nessa brochura de autoria Amílcar Cabral que ele faz, no plano internacional, a primeira denúncia de Pindjiguiti, de resto, texto esse que apresentou também como o primeiro relatório perante o Conselho Especial da ONU em Junho de 1962 e a 12 de Dezembro do mesmo ano, desta feita, quando prestou declarações perante a quarta comissão da ONU, pelo que afigura-se difícil aferir ou excluir a hipótese de que a descrição desses massacres (nomeadamente Pindjiguiti) teriam sido ou não alvos de excessivo empolamento, tanto mais que no intróito do Facts About Portugal's African Colonies, Amílcar Cabral foi incisivo ao espelhar os objectivos subjacentes: “ (...) é preciso conhecer e dar a conhecer os objectivos do inimigo para melhor o combater – tarefa que urge realizar não só junto dos militantes directamente engajados, como junto da opinião africana e internacional, ainda mal informada e muitas vezes iludida pela ideologia colonial portuguesa (...)”.

 

Na Guiné, na madrugada de 28 de Maio de 1960, foram lançados em Bissau vários panfletos, colados nas paredes e metidos debaixo das portas, em envelopes. Na madrugada de 26 de Julho de 1960, igualmente em Bissau, foram distribuídos pelos CTT de Cantchungo, em carta, dois tipos de panfletos, um cicloesticado e outro impresso. Nos dias 17 e 18 de Agosto de 1960, em Bissau, foram distribuídos pelos CTT panfletos da Frente de Libertação da Guiné e Cabo Verde – PAI, intitulados “O que Quer o Nosso Partido (PAI).” Em Setembro de 1960, foram colados nas portas dos estabelecimentos comerciais das localidades de Pitche e de Gabu panfletos assinados por Arnaldo Araújo. Nos dias 1 e 7 de Outubro de 1960, na caixa dos CTT de Bissau, foram introduzidos panfletos subordinados ao título: “Comunicado do Movimento de Libertação da Guiné, endereçado às diversas autoridades e Entidades”. No dia 24 de Outubro de 1960, foram colados nas montras dos estabelecimentos e postes de iluminação de Bissau, panfletos do Movimento de Libertação da Guiné.

 

No dia 1 e 7 de Outubro de 1960, na caixa dos CTT de Bissau, foram introduzidos panfletos subordinados ao título: “Comunicado do Movimento de Libertação da Guiné, endereçados às diversas autoridades e entidades”. No dia 24 de Outubro de 1960, foram colados nas montras dos estabelecimentos e postes de iluminação de Bissau panfletos do Movimento de Libertação da Guiné. Em Outubro de 1960, lançam igualmente mensagem “Aos Funcionários e empregados comerciais guineenses e cabo-verdianos”. A 7 de Novembro de 1960 foram enviados pelos CTT de Bissau, postais panfletos a estudantes. Oito após meses antes da proclamação da acção directa, e datado de 15 de Novembro de 1960, Cabral redige e envia um Memorando ao Governo português, onde propõe uma série de medidas, “para a liquidação pacifica da dominação colonial” :

 

Escreveu nesse texto que “(…) os povos da Guiné e de Cabo Verde têm vindo a acompanhar os desenvolvimentos da política portuguesa para os territórios ultramarinos e que, apesar de esperarem o melhor, têm-se preparado para o pior. Mantendo Portugal a decisão de não reconhecer o direito à autodeterminação dos povos, estipulado na Carta das Nações Unidas, contrariando aquilo que é manifestamente contrário à moral dos tempos, Portugal tudo tem feito para manter o seu poderio nos territórios ultramarinos (…)”. É neste Memorando que Amílcar Cabral toma ainda a iniciativa de propor ao Governo português um conjunto de doze medidas para uma transferência pacífica de poderes:

 

·         “Reconhecimento imediato do direito dos povos guineense e cabo-verdiano à autodeterminação.

·         Retirada imediata das forças militares portuguesas e da PIDE da Guiné e de Cabo Verde.

·         Amnistia total e incondicional e libertação imediata dos prisioneiros políticos.

·         Liberdade de pensamento, liberdade política, liberdade de reunião e associação, de formação de partidos políticos e de sindicatos, liberdade de imprensa e garantias efectivas para o exercício dessas liberdades sem discriminação de raça, cultura, sexo e de condições de fortuna.

·         Direito de voto, sem discriminação de raça, cultura e de civilização. Uma pessoa um voto.

·         Constituição de uma Câmara de Representantes para o povo da Guiné na base de um representante para cada 30 000 habitantes.

·         Idêntico pedido para Cabo Verde onde e base seria um representante para cada 10 000 habitantes.

·         Nos dois territórios, a Câmara de representantes deveria ser eleita por sufrágio universal, directo e secreto, em eleições gerais e livres controlada por uma comissão especial da ONU, que deveria ser composta por representantes de países africanos.

·         Depois de serem constituídas as Câmaras deveriam reunir-se de
imediato para tratarem da união orgânica dos povos dos dois
territórios.

·         Se a decisão fosse favorável à união da Guiné com Cabo Verde, nesse caso deveria ser constituído um Parlamento com deputados dos dois territórios escolhidos entre os membros eleitos pelas Câmaras de Representantes. O parlamento seria o órgão supremo do poder legislativo, que indicaria o governo, passando este a ser o órgão supremo do poder executivo.

·         Caso a decisão fosse desfavorável à união dos dois territórios num único país, as Câmaras de Representantes deveriam transformar-se em Parlamentos nacionais e cada um indicaria um dos governos.     

·         12. Todos os assuntos da vida dos povos da Guiné e de Cabo Verde deverão ser resolvidos e controlados por esses mesmos povos através dos legítimos representantes [10]”.

 

Importa sobretudo compreender que, à montante do ciclo fechado da guerra colonial/guerra de libertação, Pindjiguiti representou a irreversibilidade do processo nacionalista na Guiné, ultrapasando o seu alcance político as de uma mera reivindicação laboral, na medida em que, à montante do processo libertário guineense, circunscreve-se como um elo importante na cadeia de acontecimentos directa ou indirectamente a ele relacionados, pelo que não é e nem pode ser tomado como um acontecimento isolado, pontual ou circunstancial, justamente porque o seu alcance simbólico engendrou um importante factor de consciencialização tal que, pela sua envergadura, constituiu um decisivo ponto de viragem no processo libertário da Guiné-Bissau.

 

Esta interpretação e esta percepção, independentemente da forma como foi depois objecto de tratamento por parte da historiografia oficial do PAIGC, teve-a avant la lettre Amílcar Cabral, com a clarividência e a capacidade peculiares de antever as situações que sempre o caracterizou. Quando a XVª Assembleia Geral das Nações Unidas, na sua reunião plenária de 14 de Dezembro de 1960, aprovou a resolução 1514, mediante a qual estabelecia os princípios para a concessão da independência aos territórios sob domínio colonial e proclamava solenemente "a necessidade de eliminar, rápida e incondicionalmente, o colonialismo em todas as suas formas e manifestações", Amílcar Cabral e os nacionalistas das ex-colónias reunidos à sua volta na CEI (Casa dos Estudantes do Império) e depois no Centro de Estudos Africanos e no MAC (Movimento Anti-Colonial), convieram da necessidade de uma acção espectacular com vista a chamar à atenção da comunidade internacional sobre a situação das colónias portuguesas, particularmente os de África.

 

É na sequência de Pindjiguiti que, desde os princípios de 1960, altura em que se instalou em Conakry, que Amílcar Cabral lança a palavra da ordem da mobilização geral, particularmente junto aos camponeses, entregando-se, nessa fase a um verdadeiro trabalho ciclópico no sentido da criação de condições que propiciassem o início da guerra armada de libertação nacional. Assim, o movimento de libertação passa a ter dois núcleos de acção no exterior, Conakry e Dacar, para onde fogem os nacionalistas. A partir de então, a acção passa-se clandestinamente no interior e abertamente no exterior, salientando-se as emissões dominicais na rádio de Conakry que fazia apelos para que os guineenses e cabo-verdianos lutassem para a independência. Das emissões radiodifundidas, passa-se à a propaganda escrita e é a partir de Conakry e Dacar que saem os primeiros panfletos que foram espalhados tanto na Guiné como em Cabo Verde.

 

Nessa perpectiva,  o PAI (Amílcar Cabral)  e o MPLA (Mário de Andrade), na sequência das decisões da Conferencia dos Povos Africanos organizar em Conakry, decidiram organizar a 3 de Julho de 1960 uma jornada de Solidariedade com os patriotas das colónias portuguesas. A 14 de Julho de 1960, datado de África, Cabral redige o panfleto “O que Quer o nosso Partido”, o qual, viria a constituir a antecâmara dos Estatutos e do Programa do PAI, numa altura em que desde de  Julho de 1960, tinha já conseguido enviar vinte e cinco elementos para formação ideológica-militar à Tchescoslováquia e 30 para China e 5 para a Rússia, na perspectiva de rapidamente poder dar início à luta de libertação.

 

A 13 de Outubro de 1961, redige uma “Nota Aberta ao Governo Português”, em que reitera o teor do Memorando de Novembro de 1960, em jeito de “’ultima tentativa para a liquidação pacífica da dominação colonial [11] “.  A 1 de Dezembro de 1960, no bairro de Varela, em Bissau, foram lançados panfletos da Frente de Libertação da Guiné e Cabo Verde (PAI) com diversos títulos tais como “Aos Militares Guineenses e Cabo-verdianos (soldados, oficiais e sargentos) obrigados a servir no Exército português. “Aos Funcionários Públicos e empregados comerciais guineenses e cabo-verdianos e “Aos colonos Portugueses da Guiné e Cabo Verde”. “Ao Povo da Guiné e Cabo Verde, datado de 1 de Novembro de 1960. Nesse mesmo dia, foi distribuída, também em forma de panfleto, o Memorandum enviado por Amílcar Cabral ao Governo Português, a que fizemos referência. A 2 de Dezembro de 1960, tais panfletos foram lançados junto à casa dos oficiais portugueses, na rua atrás da sede do Benfica. No dia 4 de Dezembro de 1960, os mesmos panfletos foram espalhados pelas ruas. No dia 4 de Dezembro de 1960 os mesmos panfletos foram novamente espalhados pelas ruas.

                                                   Amílcar Cabral e Mário de Andrade

 

No fundo, o objectivo que Amílcar Cabral perseguia, perante o silêncio das autoridades coloniais portuguesas, era a obtenção da legalidade e da atmosfera internacionais propícias ao desencadeamento da guerra, segundo o postulado que ele próprio definiu como o "supremo recurso", estratégia essa que, directa e indirectamente, não teria sido tão bem sucedida internamente e nem no plano internacional sem o concurso dos efeitos multiplicadores de Pindjiguiti. Tratava-se, claro está, de conquistar a adesão, dos círculos londrinos e da comunidade internacional. Nesse sentido, Amílcar Cabral e Mário de Andrade deslocaram-se várias vezes a Londres entre 1959 e 1960, pelo que datam dessa época as primeiras denúncias internacionais do colonialismo português, as quais foram sobretudo feitas pelo escritor e africanista britânico Basil Davidson, secundados também com conferências de imprensa que, aqui e acolá, Abel Djassi (pseudónimo de Amílcar Cabral) e Mário de Andrade foram dando naquela cidade e que acabaram por servir de antecâmara a grande conferência de imprensa que os nacionalistas representantes das colónias portuguesas realizaram depois. Para essa concorrida conferência de imprensa realizada em Dezembro de 1960 e apoiada por certos círculos hostis ao colonialismo português, escolheu-se a cidade de Londres (na altura, centro da diplomacia internacional) e nela tomaram parte diversos representantes das colónias portuguesas, nomeadamente, Amílcar Cabral e Aristides Pereira, pela Guiné e Cabo Verde; Mário de Andrade, Viriato da Cruz e Américo Boa Vida, por Angola e João Cabral (na altura líder da Goa League ). por  Goa, e Marcelino dos Santos, em representação de Moçambique.

 

Na sequência dessa conferência de imprensa, mais exactamente em Agosto de 1961, num documento sintomaticamente datado do dia 3 (aniversário de Pindjiguiti) e emitido em Conakry, o PAI proclama a acção directa num curto texto, seguindo uma ordem cronológica que se inicia com a descrição do massacre do porto de Bissau, dois anos antes e relembrando a recusa portuguesa de adoptar uma solução pacífica, justificando deste modo a razão porque o PAI anuncia à passagem da fase da luta política para à insurreição nacional. Nesse documento, declara-se que todos os militantes e quadros estão mobilizados para a acção directa na luta de libertação nacional. Nele, são também convidadas todas as organizações nacionalistas a reforçarem a preparação para o combate, além de ter sido feito um apelo de auxílio a essa luta, sobretudo aos povos da África e da Ásia, reiterando ainda o apoio do PAI à luta dos nacionalistas angolanos, ao mesmo tempo que asseverava que os povos da Guiné e de Cabo Verde estavam dispostos a negociar uma solução pacífica a qualquer momento com as autoridades portuguesas [12].

 

Aliás, não foi por acaso que, na sequência da grande conferência de imprensa de Londres, no, o PAIGC ataca a vila de Catió a dia 25 de Junho de 1962 (destruição da jangada de Bedanda e cortes de fios telefónicos e estradas com abatises), marcando-se este acto a passagem à acção directa, tal como se havia prometido em Londres, pois a luta armada só começaria no ano seguinte, com o ataque ao quartel de Tite, a 23 de Janeiro de 1963. Daí que, para além das denúncias de carácter económico, político ou humanitário, Amílcar Cabral tivesse também apelado no Facts About Portugal's African Colonies para os povos e Governos anti colonialistas, para “todas as forças democráticas e progressistas do mundiais, da juventude, das mulheres e dos estudantes, para as organizações jurídicas internacionais e, em particular, para os Governos dos países africanos e asiáticos, para que um auxílio concreto e imediato seja concedido ao nosso povo em todos os planos, com vista à libertação dos patriotas presos e ao desenvolvimento da nossa luta de libertação nacional. (...)”. Em particular, renovava “ (...) o seu veemente apelo às Nações Unidas para que, em defesa do seu próprio prestígio aos olhos do mundo, se decidam a tomar, sem demora, medidas eficazes para acabar com os crimes dos colonialistas portugueses no nosso país e obrigar o Governo de Salazar a respeitar o direito do nosso povo à autodeterminação e à independência nacional. (...)”.

 

Não foi igualmente por acaso que em 1962, os vários partidos e movimentos de libertação que pululavam em Dakar e Conakry (mais contra o PAIGC do que contra o colonialismo português) decidiram criar, a 3 de Agosto desse mesmo ano, uma frente de luta, a FLING. Por fim, não foi também por acaso que Spínola, por ironia do destino, mas com objectivos claramente à vista, procedeu, no âmbito da sua política da "Guiné Melhor", a 3 de Agosto de 1969, a uma espectacular libertação de cerca de uma centena de prisioneiros políticos guineenses, dos quais Rafael Barbosa, ex-presidente do PAIGC, bem como todos os que se encontravam na colónia penal da ilha das Galinhas e da colónia penal de Tarrafal em Cabo Verde, para além dos que se encontravam no forte de Roçadas, em Angola, em pleno deserto de Moçamedes.

 

Porém, é importante referir-se que as denúncias de Pindjiguiti – que em medida considerável catalisaram a sua interiorização e longevidade no imaginário colectivo guineense – foram posteriores ao “Memorando…” e “Nota ao Governo Português…” endereçados por Amílcar Cabral ao Governo português, o que demonstrativo de que, desde cedo, o PAI optou sempre por enquadrar e mesmo legitimar o seu substrato ideológico, pelo menos em termos de enunciado, no espírito dos princípios da legalidade internacional, mormente nos postulados das Nações Unidas e dos Direitos Humanos. Salazar, porém, manteve silêncio perante todas estas reivindicações, vindo posteriormente a declarar que “(…) o facto de um território se proclamar independente é fenómeno natural nas sociedades humanas, e por isso, representa uma hipótese sempre admissível, mas em boa verdade não se lhe pode nem deve marcar prazo(…).” [13].

 

Ora, para lá do provável ou mesmo real empolamento de Pindjiguiti e da justeza ou não das formas e conceitos, sempre discutíveis, sobre a forma como o acontecimento foi etiquetado (contenda laboral, massacre ou carnificina) ” ou ainda do quantitativo de mortes que se saldou na decorrência do acontecimento enquanto tal, temos para nós que o que se afigura importante é o reconhecimento da importância e o alcance históricos que o mesmo teve, à montante e à jusante da guerra colonial/guerra de libertação, no contexto do processo libertário do povo guineense. Aliás, não foi por acaso que depois de Pindjiguiti o PAIGC logrou atingir uma assinalável mobilização que permitiu posteriormente desencadear a luta armada de libertação. Também, não foi por acaso que no decorrer da guerra colonial/guerra de libertação, invariavelmente, o PAIGC normalmente assinalava a efeméride com ataques simultâneos a várias localidades, inclusivamente os centros urbanos, sobretudo a partir de 1968.

 

NOTAS:

 

[6] - Entrevista de Rafael Barbosa a Leopoldo Amado, Bissau.

 

[7] - Hugo Azancot de Menezes foi propositadamente expedido para Conakry no quadro do Centro de Estudos Africanos (uma dissidência protagonizada no seio da Casa dos Estudantes do Império essencialmente por Amílcar Cabral, guineo-cabo-verdiano, Mário de Andrade, angolano, e Francisco José Tenreiro, santomense) e do MAC (Movimento Anti colonial).

 

[8] - Em Outubro de 1959, a viagem de Amílcar Cabral ao Congo Belga, Ghana, República do Congo, Senegal e Guiné Conakry foi referenciado pela PIDE-DGS. No Congo Belga, na ausência de Lumumba, contactou os senhores Madiana e Npolo, respectivamente presidente e secretário permanente do Movimento Nacional Congolês. Na mesma viagem, uma vez chegada ao Gana, procurou apoio do N’Krumah para a luta de libertação, tentando nomeadamente obter autorização para a instalação nesse país e na Guiné Conakry da sua base de luta.

 

[9] - A FRAIN foi fundada na Tunísia por Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Marcelino dos Santos e Mário de Andrade.

 

[10] - Memorando ao Governo Português, Arquivos do PAIGC, Conakry, 1 de Dezembro de 1960.

 

[11] - Cabral, Amílcar, (corrd. Mário de Andrade) Unidade e Luta, a Prática Revolucionária, Vol. II, Seara Nova, 1977, pp. 30-31.

 

[12] - Idem.

 

[13] - Entrevista concedida por Salazar à revista Life em Maio de 1962, citado por Manuel José Homem de Melo em O Ultramar e o Futuro, Lisboa, ed. do autor, 1962, p. 3.

 



publicado por jambros às 14:31
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Terça-feira, 12 de Dezembro de 2006
A actual (e grave) situação económica-financeira da Guiné-Bissau (Parte I)

 

Memorando sobre políticas económicas e

financeiras para o restante de 2006

 

 

 

Por: autor não identificado

 

                                

                                 INTRODUÇÃO

 

  1. Em um ambiente de maior consolidação da paz e estabilidade política, o governo da Guiné-Bissau implementou um programa económico e financeiro para 2006, monitorado pelo corpo técnico do Fundo (SMP). O SMP para o período de 2006 teve por objectivo a estabilização da posição fiscal, a restauração da confiança na administração macroeconómica, a aceleração das reformas estruturais e uma melhoria nas relações financeiras com os credores.

 

  1. O presente memorando descreve os desenvolvimentos económicos de Abril a Outubro de 2006 e traça as políticas e medidas planeadas para o restante do período do SMP.

 

II. DESENVOLVIMENTOS RECENTES E DESEMPENHO SOB O SMP DE ABRIL A OUTUBRO DE 2006

 

  1. Durante o ano de 2006, as autoridades atingiram significativos progressos no sentido da melhoria da situação fiscal e do fortalecimento da capacidade administrativa e executiva do governo. Porém, a situação económica e fiscal ficou abaixo do esperado em 2006, devido a diversos factores. Metas chave estipuladas pelo SMP, a saber receitas, massa salarial, saldo primário e financiamento interno do orçamento (quatro de sete metas quantitativas) não foram atingidas em Julho e Outubro, ao mesmo tempo em que o desempenho em indicadores estruturais de referência foi variado. Especificamente, em Outubro de 2006, três de oito dos indicadores estruturais não foram atingidos ou foram parcialmente atingidos (lançamento de concurso para contratação de funcionários públicos, eliminação de isenções taxas aduaneiras discricionárias e ratificação do projecto de lei para o sector de energia). As autoridades tomaram várias medidas importantes para melhorar o desempenho pelos restantes meses de 2006 e anos subsequentes.

 

  1. Apesar da inflação esperada permanecer baixa, cerca de 2% em 2006, espera­-se que o crescimento real do PIB fique um pouco abaixo de 1,8% para o ano, representando uma queda em relação aos 3,5% de 2005 e menos que os 4% inicialmente projectados para 2006. Em primeiro lugar, o investimento público ficou bem abaixo dos níveis orçados, devido a restrições orçamentais (ver abaixo), o que trouxe impactos negativos no desempenho do PIB. Em segundo lugar, as exportações de castanha de caju, um dos principais produtos de exportação, ficaram bem abaixo dos níveis esperados e dos anos anteriores, devido a uma queda nos preços mundiais conjugada com uma decisão governamental de estabelecer o preço de referência ao produtor deste ano acima dos níveis que intermediários e exportadores estavam dispostos a pagar, dado os preços internacionais. Apesar do preço de referência ser apenas indicativo, ele é uma importante orientação para os produtores que não têm acesso a outras informações relativas a preços. Esse problema foi agravado pelo aumento no preço de referência aplicado para fins fiscais na exportação do caju, apesar da queda dos preços nos mercados internacionais, o que reduziu ainda mais os incentivos para exportadores. No início da campanha do caju deste ano, os produtores inicialmente retiveram a mercadoria, aguardando melhores preços. Porém, à medida que a necessidade de obter recursos aumentou, foram forçados a vender a preços significativamente abaixo da média histórica, uma vez que havia excesso de oferta no mercado. Nessas circunstâncias, o governo criou uma agência administrada pelo estado para comprar caju directamente dos produtores a preços mais próximos do preço de referência, usando arroz doado pelo Senegal e pela Gâmbia para cobrir parte do pagamento aos produtores. Em finais de Outubro, estima-se que 12.000 a 15.000 toneladas de caju (13 a 16 porcento da produção deste ano) ainda se encontrem nas zonas rurais. A precária capacidade de armazenagem do país pode bem ter arruinado parte dessa produção (a campanha de caju normalmente vai de Maio a Agosto).

 

  1. A situação fiscal também está abaixo do esperado em 2006. Apesar dos esforços empreendidos durante o ano para melhorar o desempenho das receitas, conter despesas, especialmente da massa salarial, e reduzir o défice fiscal, o programa fiscal para 2006 não alcançou as metas do SMP para Julho e Outubro. As receitas aumentaram de 17,6% do PIB em 2005 para [19,5] % do PIB estimados em 2006, mas ficaram em cerca de 2% abaixo da meta estabelecida pelo SMP para todo o ano. Para o final de Outubro, as receitas estão estimadas em [22] bilhões de FCFA, comparadas à meta de [27] bilhões de FOFA. A arrecadação abaixo do esperado dos impostos sobre a exportação de caju e de proveitos de licenças de pesca explicam em boa parte o fraco desempenho das receitas. Da mesma forma, os proveitos com licenças de telecomunicações ficaram abaixo do esperado até Outubro. Atrasos nas negociações dum novo acordo de pesca com a UE trouxeram alguma incerteza entre os armadores dessa União e consequente redução na taxa de utilização das potencialidades pesqueiras. O declínio das receitas de licenças para pesca, a maior fonte de rendimento não-tributário, foi compensado em parte por um desempenho acima do esperado nas outras fontes não-tributárias, incluindo multas por pesca ilegal e licenças de prospecção de petróleo. No tocante a receitas fiscais, apesar do aumento de 15% do preço de referência para a exportação de caju (de um preço de 650 USD por tonelada em 2005 para 750 USD por tonelada em 2006), a receita fiscal da exportação de caju está muito abaixo do esperado, como resultado da queda do volume das exportações de caju. Por outro lado, houve uma melhoria na contribuição industrial em 2006.

 

  1. As despesas primárias correntes caíram cerca de 1,4% do PIB em 2006, quando comparadas a 2005 e ficaram alinhadas com o que foi programado no quadro do SMP para todo o ano. Porém, a massa salarial (um indicador quantitativo do SMP) ultrapassará a meta em quase 1 % do PIB para todo o ano. Não obstante os esforços das autoridades para a redução da massa salarial - de 13,4% do PIB em 2005 para os estimados 12,6% em 2006 - estima-se que a mesma excedeu a meta quantitativa do SMP em 1,3 bilhão de FOFA. Porém, se o governo prosseguir com os planos de aposentar cerca de [500] funcionários públicos que atingiram em 2006 a idade de reforma obrigatória e dispensar, antes do final do ano, cerca de [1000] funcionários que já foram identificados (vide abaixo), uma redução de aproximadamente [0,07] bilhão de FCFA, ou (0,04) % do PIB poderá ser esperada até o final do ano. Outras despesas correntes não-salariais (p.ex. bens e serviços e transferências) estão acima em quase 1 % do PIB em 2006 quando comparadas às de 2005 e excederam os níveis programados no SMP. Por sua vez, as derrapagens em salários e outras despesas correntes, incluindo viagens e despesas de representação, foram compensadas por uma redução do investimento público, muito mais necessário e premente. O saldo primário foi reduzido de (6,9) % do PIB em 2005 para os estimados 5,7% em 2006, mas está acima da meta estabelecida pelo SMP em estimados 1,7% do PIB para todo o ano. Estima-se que o saldo primário exceda a meta quantitativa de Outubro do SMP em [6] bilhões de FCFA. O saldo deficitário global (incluindo donativos) deverá alcançar [8,1 ] bilhões de FCFA para todo o ano de 2006. Este défice, combinado com a necessidade de se efectuar pagamentos do serviço da dívida externa, originará uma necessidade de financiamento de [7,7 ] bilhões de FCFA ([4,7]% do PIB) no final de 2006.

 

  1. Dado o resultado fiscal abaixo do esperado e a necessidade de se cobrir o défice financeiro, o financiamento interno provavelmente ultrapassará a meta do SMP para 2006 na sua totalidade. Tendo em vista as receitas fiscais abaixo do esperado, o governo contraiu nova dívida interna comercial na ordem de 4% do PIB, de forma a pagar salários de Maio a Julho de 2006 [1]. O programa prevê este tipo de endividamento, mas conta que seja pago integralmente até o final de 2006 (apesar dos Títulos vencerem apenas em Fevereiro de 2007), na expectativa que os fundos da UE e do Banco Mundial sejam desembolsados até lá. Porém, devido ao desempenho abaixo do esperado em receitas, é pouco provável que os Títulos sejam pagos na íntegra em 2006. Portanto o financiamento interno irá exceder o limite do SMP para final de Dezembro de 2006 [2]. Ao mesmo tempo, o restante do défice financeiro será provavelmente coberto com nova emissão de Títulos do Tesouro, garantidos por engajamentos de apoio orçamental a obter durante a próxima reunião de doadores (vide abaixo), aumentando ainda mais o financiamento interno. O financiamento interno líquido foi incrementado através de uma redução nos pagamentos da dívida com o BCEAO. O Ministério das Finanças decidiu afectar 10% das entradas na conta corrente do Tesouro para o pagamento da dívida junto a esta instituição. Para 2006, isso implica em um pagamento ao BCEAO inferior ao originalmente programado.

 

  1. Em 2006 continuaram a registar-se progressos na área de reformas estruturais, no entanto, a agenda de reforma ainda não foi concluída. O recenseamento militar baseado na emissão de bilhetes de identidade biométricos está praticamente concluído. O recenseamento servirá para confirmar o número exacto de efectivos militares e para identificar os que serão integrados no programa de desmobilização. No tocante à área de reforma da função pública, o governo aprovou as leis orgânicas de todos os ministérios e está actualmente em curso o processo de definição das estruturas organizacionais internas de cada ministério. Com vista a garantir maior transparência e melhor gestão de despesas com salários, o governo iniciou em Setembro um sistema por pagamento electrónico de salários aos funcionários públicos através de contas abertas em bancos locais. Em Setembro, o Governo pagou electronicamente um total de 1,2 bilhão de FCFA referentes aos salários do mês de Agosto (75% do total de salários pagos neste mês). Para além disso, a instalação de um sistema integrado de identificação para os servidores públicos se encontra em estado bem avançado. No fim desse processo, as despesas com a folha de pagamento para servidores serão feitas com base no número nacional de identificação ao invés de nomes, como ocorre actualmente. Em outras áreas do funcionalismo, as autoridades identificaram mais de 1.000 funcionários que serão desvinculados da função pública em 2006. Numa primeira fase e a partir de Outubro, os funcionários públicos acima referidos serão removidos de suas funções e receberão uma compensação, visto que o pagamento dos seus salários será eliminado da folha de pagamentos do governo para serem pagos na recém criada Secretaria de Estado da Reforma. Durante o ano de 2007, com apoio financeiro de doadores, esses funcionários serão completamente desvinculados do governo e reintegrados no sector privado através de formação para reconversão profissional e/ou programas de micro-crédito. Outras medidas estruturais tomadas pelo governo incluem a implementação de selagem de bebidas alcoólicas e cigarros; a aprovação pelo Conselho de Ministros do novo projecto de lei de electricidade para o sector de energia; e a eliminação de isenções aduaneiras que não estejam em harmonia com o quadro legal vigente. No entanto, em relação a este último aspecto, sao necessárias medidas adicionais para eliminar na totalidade todas as isenções arbitrárias, visto que algumas, apesar de legais, permanecem arbitrárias (p.ex: isenções que não estão de acordo com convenções internacionais, como evidenciadas pelas concedidas aos militares). Além disso, um dos decretos que regulamenta o sector energético ainda precisa ser aprovado pela Assembleia. electronicamente um total de 1,2 bilhão de FCFA referentes aos salários do mês de Agosto (75% do total de salários pagos neste mês). Para além disso, a instalação de um sistema integrado de identificação para os servidores públicos se encontra em estado bem avançado. No fim desse processo, as despesas com a folha de pagamento para servidores serão feitas com base no número nacional de identificação ao invés de nomes, como ocorre actualmente. Em outras áreas do funcionalismo, as autoridades identificaram mais de 1.000 funcionários que serão desvinculados da função pública em 2006. Numa primeira fase e a partir de Outubro, os funcionários públicos acima referidos serão removidos de suas funções e receberão uma compensação, visto que o pagamento dos seus salários será eliminado da folha de pagamentos do governo para serem pagos na recém criada Secretaria de Estado da Reforma. Durante o ano de 2007, com apoio financeiro de doadores, esses funcionários serão completamente desvinculados do governo e reintegrados no sector privado através de formação para reconversão profissional e/ou programas de micro-crédito. Outras medidas estruturais tomadas pelo governo incluem a implementação de selagem de bebidas alcoólicas e cigarros; a aprovação pelo Conselho de Ministros do novo projecto de lei de electricidade para o sector de energia; e a eliminação de isenções aduaneiras que não estejam em harmonia com o quadro legal vigente. No entanto, em relação a este último aspecto, são necessárias medidas adicionais para eliminar na totalidade todas as isenções arbitrárias, visto que algumas, apesar de legais, permanecem arbitrárias (p.ex: isenções que não estão de acordo com convenções internacionais, como evidenciadas pelas concedidas aos militares). Além disso, um dos decretos que regulamenta o sector energético ainda precisa ser aprovado pela Assembleia.

 

  1. Por um lado, a empresa de pesca "Semapesca" foi privatizada em Março de 2006 (uma das três que deveriam ser privatizadas de acordo com o SMP). Por outro lado, a privatização do Hotel 24 de Setembro foi protelada visto que o governo aguarda uma melhor oferta para avançar com o processo. De outra forma, houve atrasos na implementação de algumas reformas estruturais. Na área da reforma da função pública, o lançamento do programa de recrutamento de técnicos superiores por concurso público também está atrasado. O governo prevê iniciar o programa somente após a conclusão do processo de organização estrutural de todos os ministérios, que está programado para Janeiro de 2007. Em relação aos efectivos militares, houve atrasos na sua identificação para o programa de desmobilização, devido à não conclusão do sistema de identificação biométrico.

 

III.      OBJECTIVOS E POLÍTICAS PARA O RESTANTE DO ANO 2006

 

  1. Considerando a situação fiscal abaixo do esperado, ao pouco tempo que falta para terminar o programa financeiro de 2006 e as limitadas medidas políticas disponíveis, será difícil cumprir as metas quantitativas do SMP para o ano. Tendo em vista o grande défice financeiro estimado para o final de 2006, o governo pretende tomar uma série de medidas imediatas para colmatar tal défice:

 

i. fazer cortes na despesa primária corrente no montante de 0,7 bilhão de FCFA (0,4% do PIB), incluindo estipular limites máximos para as rubricas de viagens, despesas de representação e outros bens e serviço

ii. solicitar financiamento adicional dos doadores para cobrir o défice remanescente de 2006; e

 

iii. emissão de novos Títulos de Tesouro até o final do ano, que serão garantidos por engajamentos de financiamentos a obter na Conferência de Doadores de Novembro.

 

  1. As autoridades também estão empenhadas na resolução dos problemas críticos relacionados com a insuficiência de receitas e derrapagens em despesas. Medidas tomadas agora nessas áreas têm um impacto quantitativo limitado no resultado fiscal de 2006, porém têm importantes implicações a médio prazo e indicam o engajamento das autoridades em reverter a situação macroeconómica em 2007 e nos próximos anos. As medidas incluem:

 

i. Anunciar publicamente uma estratégia de comercialização do caju para a próxima campanha de 2007 que será um retorno a condições de comercialização normais e transparentes, livres de intervenção do governo no circuito de exportação.

ii. Anunciar publicamente a sua decisão de desmantelar a recém criada agência de comercialização de caju administrada pelo Estado, liquidar com efeitos imediatos o seu stock de castanha e regularizar as suas responsabilidades com camponeses e credores. Isso também será um sinal importante para os camponeses de que o governo não pretende intervir nos sistemas de comercialização da castanha.

 

iii. Por forma a incentivar os comerciantes a drenarem todos stocks de castanha ainda existentes nas zonas rurais, para o restante do ano 2006, o governo vai baixar o preço de referência usado para calcular os impostos de exportação do caju para cerca de 250 USD por tonelada, para o compatibilizar mais com os preços externos realizados.

 

iv. O Governo venderá imediatamente cerca de 6.000 toneladas de caju confiscado em 2006 como pagamento por contribuição industrial atrasada de uma empresa de exportação.

 

v. Para resolver a questão de excessos de despesas, particularmente na área de despesas variadas em bens e serviços, as autoridades comprometem-se a reforçar o funcionamento do Comité de Tesouraria. Isso implica a revogação dos despachos vigentes relacionados com o Comité de Tesouraria. O Comité Técnico do Comité de Tesouraria, bem como o Comité de Tesouraria em si, continuarão a reunir-se uma vez por semana para acompanhar o plano semanal de fluxo de caixa e aprovar despesas ex-ante, com excepção de despesas correntes inadiáveis. Uma vez por tnês, o Comité de Tesouraria debaterá as previsões de fluxo de caixa anual, semestral e mensal e preparará um relatório mensal sobre as previsões revisadas dos fluxos de caixa. De forma a evitar que responsáveis de alto nível tenham que se reunir e aprovar despesas individuais, o Ministério das Finanças abrirá uma conta especial no BCEAO, para a realização de despesas urgentes inadiáveis, administradas pelo Ministro. A conta terá um teto máximo rigoroso que não poderá ser ultrapassado. Este teto está estabelecido em 10 porcento dos montantes mensais programados para as seguintes rubricas de despesas: viagens exteriores (transporte e ajuda de custo), representações, transferências para a Assembleia e combustível. Um novo Conselho Consultivo, mais restrito, composto pelo Ministro das Finanças e representantes do BCEAO, da UE e do PNUD reunir-se-á uma vez por mês para analisar o relatório mensal do Comité de Tesouraria e as despesas da conta especial. O Governo irá promulgar um novo despacho, criando o enquadramento legal destes novos arranjos.

vi. O governo compromete-se a não efectuar pagamentos de atrasados de anos anteriores pelo restante de 2006, a não ser que financiamento externo específico para esse fim seja obtido, e a evitar o acúmulo de novos atrasados. No tocante ao total de atrasados para o período de 2000-2005, o Governo cancelou todas as dívidas pendentes que não foram contraídas de acordo com os procedimentos administrativos legais. Para o total de atrasados remanescente de 2000-2005, o Governo pretende iniciar, com a ajuda de doadores, uma ampla auditoria das dívidas e buscar financiamento externo para sua regularização. O Governo também buscará financiamento externo para liquidar atrasados correspondentes ao período anterior ao ano 2000, que já foi auditado. Embora se espere que o sistema de controlo de caixa ajude a evitar a acumulação de novos atrasados nas rubricas de despesas variáveis, dívidas temporárias em rubricas certas poderão surgir ao longo do último trimestre do ano. A grande proporção de despesas salariais e outros gastos certos, a concentração de receitas fiscais em meados do ano e a concentração do financiamento do Banco Mundial no fim do ano, implicam que, sem financiamento adicional, novos atrasados poderão surgir nessas rubricas de despesas (base engajamento) no fim do ano. A regularização destas dívidas terá a mais alta prioridade quando novos financiamentos forem obtidos.

vii. O governo concorda em vender o Hotel 24 de Setembro, em linha com os indicadores de referência estruturais do SMP.

  1. De forma a demonstrar o seu engajamento para com as reformas, as autoridades comprometem-se a iniciar a implementação das medidas acima indicadas antes da Conferência de Doadores prevista para 7 de Novembro de 2006.

NOTAS:

 [1] - Em Agosto, o governo levantou 6,7 biliões de FCFA (4% do PIB) ao emitir Títulos do Tesouro de 180 dias com 5% de juros. Esses Títulos foram colocados através do BCEAO, a totalidade com financiamento de instituições dentro da UEMOA e tratados como financiamento interno sob o programa. Esses Títulos são garantidos por desembolsos esperados da UE e do Banco Mundial.

 

[2] - Para estar de acordo com o tecto de financiamento interno de acordo com o programa, quaisquer Títulos de Tesouro lançados durante o ano devem ser pagos antes do final de 2006. Um ajuste no programa permite que este tecto seja aumentado por valor correspondente a qualquer insuficiência de apoio orçamental externo. Uma quantia de 4,1 biliões de FCFA em apoio orçamental da UE foi, por enquanto, adiada para o ano que vem. Portanto, os 2,6 biliões de FCFA remanescentes dos Títulos recém-lançados deverão ser pagos antes de Dezembro de 2006 para não exceder a meta de financiamento interno.

 

 



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A actul (e grave) situação económica-financeira da Guiné-Bissau (Parte II)

IV. CONJUNTURA MACROECONÓMICA E POLÍTICAS PARA 2007

 

 

                                     

Por: autor não identificado

 

  1. Espera-se que a actividade económica se recupere em 2007, presumindo-se que haja normalização dos acordos comerciais no sector do caju, assim como um aumento na produção devido à maturação e à ampliação moderada das plantações. Estima-se um crescimento real do PIB de [5]% para 2007, acima da taxa de crescimento populacional. Quanto à taxa de inflação, calcula-se que permaneça alinhada com o critério de convergência da UEMOA em cerca de 2%. Calcula-se que o défice em conta corrente (excluindo-se donativos) aumente para cerca de [14,9]% do PIB em 2007, reflectindo maiores importações referentes ao programa de investimento público (Tabela [ ]). Além de alcançar um ganho real em renda per capita, a conjuntura macroeconómica de 2007 visa dar apoio à redução da pobreza ao acelerar o ritmo de gastos prioritários no âmbito do orçamento existente, em linha com o Plano Estratégico para a Redução da Pobreza (PERP) acordado pelo Governo.

 

Políticas Fiscais

 

  1. O Governo está comprometido com o seguimento de uma política fiscal prudente. A conjuntura fiscal, assim como foi em 2006, tem por objectivo evitar a acumulação de dívidas internas ao longo de todo o ano. A conjuntura macroeconómica de 2007 pressupõe uma postura fiscal similar (medida pelo défice primário) como em 2006. Estima-se que receita percentual em relação ao PIB permaneça em cerca de [19]%, já que qualquer melhoria na receita tributária no sector de exportação de caju será neutralizada parcialmente por quedas em receitas não-presumindo-se que haja normalização dos acordos comerciais no sector do caju, assim como um aumento na produção devido à maturação e à ampliação moderada das plantações. Estima-se um crescimento real do PIB de [5]% para 2007, acima da taxa de crescimento populacional. Quanto à taxa de inflação, calcula-se que permaneça alinhada com o critério de convergência da UEMOA em cerca de 2%. Calcula-se que o défice em conta corrente (excluindo-se donativos) aumente para cerca de [14,9]% do PIB em 2007, reflectindo maiores importações referentes ao programa de investimento público (Tabela [ ]). Além de alcançar um ganho real em renda per capita, a conjuntura macroeconómica de 2007 visa dar apoio à redução da pobreza ao acelerar o ritmo de gastos prioritários no âmbito do orçamento existente, em linha com o Plano Estratégico para a Redução da Pobreza (PERP) acordado pelo Governo.

 

  1. No tocante às despesas, a política do Governo continua a ter como meta o controle de despesas variáveis para poder disponibilizar recursos necessários para lidar com as camadas mais pobres da população nos sectores de saúde e educação, assim como para a manutenção e melhoria de infra-estruturas básicas. 0 Governo também pretende continuar a diminuir a massa salarial excessiva, sendo esta uma forma importante de melhorar a alocação de recursos. Por forma a obter uma redução duradoira da massa salarial excessiva, o governo pretende implementar reformas há muito devidas na função pública e na segurança, para as quais espera angariar financiamento suficiente na Conferência de Doadores em Novembro. Em 2007, o governo continuará apagar o pacote de indemnizações por mais 10 meses para cerca de 1000 funcionários públicos das categorias salariais mais baixas que deverão ser dispensados nos últimos dois meses de 2006. Em 2007, o governo continuará a pagar o pacote de indemnizações por mais 10 meses para cerca de 1000 funcionários públicos das categorias salariais mais baixas que serão dispensados nos últimos dois meses de 2006. O pagamento dessas indemnizações terminará quando se materializar o programa de protecção apoiado por doadores através de micro empresas e programas de formação. Para além disso, mais 110 funcionários que atingiram a idade de reforma obrigatória mas que ainda estão arrolados na folha de salários serão aposentados. A curto prazo, o impacto fiscal da reforma será neutro uma vez que a projectada redução da massa salarial referente aos funcionários dispensados e que representa 195 milhões de FCFA (ou 0,1 % do PIB) será contrabalançada por pagamento de indemnizações. No caso dos aposentados, a economia de 69 milhões de FCFA (ou cerca de 0,04 do PIB) será compensada pelo pagamento das pensões, mesmo que a uma percentagem abaixo dos salários actuais. De outra forma, o pagamento de salários através de contas bancárias também ajudará a evitar duplicações.

 

  1. Assim como em 2006, o Governo compromete-se a não efectuar pagamentos de atrasados de anos anteriores, a não ser que financiamento externo específico para esse fim seja obtido, e a evitar o acumulo de novos atrasados.
  2. Apenas o apoio orçamental da UE no montante de 2,1 % do PIB (o montante originalmente projectado para desembolso em 2006 e adiado até 2007) foi identificado. O restante terá que ser coberto por compromissos na Conferência dos Doadores de Novembro. Na eventualidade de o financiamento por parte de doadores ser insuficiente para cobrir o gap, as autoridades identificaram cortes de contingência em despesas não-salariais variáveis, incluindo compras de bens e serviços e transferências governamentais.

 

Administração de despesas públicas

 

  1. Comité de Tesouraria: o Governo compromete-se a assegurar que haverá continuidade dos trabalhos regulares do Comité de Tesouraria e do Conselho Consultivo Especial ao longo de 2007.

 

  1. A partir de Abril de 2007, em linha com a prática em outros países da UEMOA, todos os Ministérios fecharão suas contas individuais actualmente existentes no BCEAO e abrirão contas no Tesouro. O Tesouro administrará as contas dos Ministérios por meio de uma única conta no BCEAO.

 8. Apesar das receitas projectadas serem conservadoras e pressuporem apenas um ligeiro aumento em relação ao PIB, as autoridades continuarão a tomar medidas para melhorar o desempenho de receitas em 2007, incluindo medidas para expandir a base tributária, fortalecer a administração fiscal e melhorar o cumprimento e controle das licenças para a pesca. Com este propósito, as autoridades irão reforçar a recém criada Direcção de Serviços de Grandes Empresas através, entre outros, da aplicação do Sistema de Contabilidade do Oeste de África (SYSCOA) assim como do uso dos recém adquiridos computadores e da assistência técnica para melhorar as habilidades em tecnologias de informação por forma a automatizar a monitoria de grandes e médias empresas. As autoridades pretendem reduzir a actual taxa de não pagamento na Direcção de Serviços de Grandes Empresas através de um melhor seguimento de contribuintes faltosos, e da aplicação de multas quando for o caso. Para além disso a administração das alfândegas será reforçada ainda mais por meio da aquisição de um software informático (SYDONIA++). Esta ferramenta permitirá que as alfândegas melhorem o controlo e a avaliação de importações mediante acesso a informação online da Direcção Geral de Contribuições e Impostos (DGCI) e dos bancos comerciais. Finalmente, as autoridades deverão fazer progressos na monitoria e controlo pesqueiro e cumprimento das licenças de pesca através da aquisição de equipamento como parte de projectos em curso com o BAD.

 

V.        REFORMAS ESTRTURAIS EM 2007

 

Reforma da Função Pública

 

  1. O governo permanece comprometido com a implementação da reforma da administração pública (civil e militar). As reformas nesta área são essenciais para garantir a sustentabilidade fiscal a médio prazo, dado que o tamanho excessivo da função pública e da alta estrutura salarial militar resultar em um grande ónus salarial sobre as finanças públicas (absorve cerca de 65% das receitas). Também deve ser enfatizada a formação e a capacitação dos funcionários remanescentes, ao mesmo tempo que se fortalece a estrutura da administração pública.

 

  1. As medidas propostas para 2007 incluem:

 

·        Reintegrar no sector privado funcionários públicos dispensados, de acordo com a disponibilidade dos doadores.

 

·        Preencher todas as vagas (de técnicos superiores) em pelo menos quatro ministérios, usando um programa de contratação por concurso.

 

·        Instalar um sistema integrado de dados para funcionários públicos e basear a folha de pagamento de pessoal em seus bilhetes nacionais de identidade.

 

·        Identificar e retirar da folha de pagamento todos os funcionários e militares que atingiram a idade obrigatória de reforma. Essas pessoas passarão a receber suas devidas pensões ao invés de salários.

 

·        Completar o processo de definição da estrutura organizacional interna de todos os ministérios e secretarias de estado.

 

Outras reformas estruturais e iniciativas para o desenvolvimento do sector privado

 

  1. Para além disso, o Governo vai implementar algumas outras reformas estruturais e iniciativas para o desenvolvimento do sector privado:

 

·        Privatizar ou liquidar pelos menos três outras empresas estatais dos sectores de produção e comércio. O Governo indicará antes do final de 2006 os nomes das empresas a serem privatizadas ou liquidadas.

 

·        Dispensar todos os funcionários envolvidos em empresas estatais que serão objecto de privatização ou liquidação. Essa medida irá limitar o montante do pacote de indemnização que o Governo teria que pagar a esses trabalhadores.

 

·        Reduzir o número de leis que permitem ao Governo conceder isenções de taxas aduaneiras que não estejam em linha com as normas estabelecidas no quadro de convenções internacionais.

 



publicado por jambros às 16:19
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Receita para um "jet-set" nacional
     
                          Por: Mia Couto                                                           
Já vimos que, em Moçambique, não é preciso ser rico. O essencial é parecer rico. Entre parecer e ser vai menos que um passo, a diferença entre um tropeço e uma trapaça.

No nosso caso, a aparência é que faz a essência. Daí que a empresa comece pela fachada, o empresário de sucesso comece pelo sucesso da sua  viatura, a felicidade do casamento se faça pela dimensão da festa. A ocasião, diz-se, é que faz o negócio. E é aqui que entra o cenário dos ricos e candidatos a ricos: a encenação do nosso "jet-set".

O "jet-set" como todos sabem é algo que ninguém sabe o que é. Mas reúne a gente de luxo, a gente vazia que enche de vazio as colunas sociais. 

O jet-set moçambicano está ainda no início. Aqui seguem umas dicas que,  durante o próximo ano, ajudarão qualquer pelintra a candidatar-se a um jet-setista. Haja democracia! As sugestões  são gratuitas e estão dispostas na forma de um pequeno manual por desordem alfabética: 
Anéis - São imprescindíveis. Fazem parte da montra. O princípio é: quem tem boa aparência é bem aparentado. E quem tem bom parente está a meio caminho para passar dos anéis do senhor à categoria de Senhor dos Anéis O jet-setista nacional deve assemelhar-se a um verdadeiro Saturno, tais os anéis que rodeiam os seus dedos. A ideia é que quem passe nunca confunda o jet-setista com um magaíça*, um pobre, um coitado. Deve-se usar jóias do tipo matacão, ouros e pedras preciosas tão grandes que se poderiam chamar de penedos preciosos.  A acompanhar a anelagem deve exibir-se um cordão de ouro, bem visível entre a camisa desabotoada.

Boas maneiras - Não se devem ter. Nem  pensar. O bom estilo é agressivo, o arranhão, o grosseiro. Um tipo simpático, de modos afáveis e que se preocupa com os outros? Isso, só uma pessoa que necessita de aprovação da sociedade. O jet-setista nacional não precisa de aprovação de ninguém, já nasceu aprovado. Daí os seus ares de chefe, de gajo mandão, que olha o mundo inteiro com  superioridade de patrão. Pára o carro no meio da estrada  atrapalhando o trânsito, fura a bicha**, passa à frente, pisa o cidadão anónimo. Onde os outros devem  esperar, o jet-setista aproveita para exibir a sua condição de criatura especial. O jet-setista não espera: telefona. E manda. Quando não desmanda. 
Cabelo - O nosso jet-setista anda a reboque das modas dos outros. O que vem dos americanos: isso é que é bom. Espreita a MTV e fica deleitado com uns  moços cuja única tarefa na vida é fazer de conta que cantam. Os tipos são fantásticos, nesses  video-clips: nunca se lhes viu ligação alguma com o trabalho, circulam com viaturas a abarrotar de miúdas descascadas. A vida é fácil para esses meninos. De onde lhes virá o sustento? Pois esses queridos fazem questão em rapar o cabelo à moda militar, para demonstrar a sua agressividade contra um mundo que os excluiu mas que, ao que parece, lhes abriu a porta para uns tantos luxos. E esses andam de cabelo rapado. Por enquanto.
Cerveja - A solidez do nosso matreco vem dos  líquidos. O nosso candidato a jet-setista não simplesmente bebe. Ele tem de mostrar que bebe. Parece um reclame publicitário ambulante. Encontramos o nosso matreco de cerveja na mão em casa, na rua, no automóvel, na casa de banho. As obsessões do matreco nacional variam entre o copo e o corpo (os tipos ginasticam-se bem). Vazam copos e enchem os corpos (de musculaças). As garrafas ou latas vazias são deitadas para o meio da rua. Deitar a lata no depósito do lixo é uma coisa demasiado "educadinha". Boa educação é para os pobres. Bons modos são para quem  trabalha. Porque a malta da pesada não precisa de maneiras. Precisa de gangs. Respeito? Isso o dinheiro não compra. Antes vale que os outros tenham medo.
Chapéu - É fundamental. Mas o verdadeiro jet-setista não usa chapéu quando  todos os outros usam: ao sol. Eis a criatividade do matreco nacional: chapéu ele usa na sombra, no interior das viaturas e sob o tecto das casas. Deve ser um chapéu que dê nas vistas. Muito aconselhável é o chapéu de  cowboy, à la Texana. Para mostrar a familiaridade do nosso matreco com a rudeza dos domadores de cavalos. Com os que põe o planeta na ordem. Na sua ordem.

Cultura - O jet-setista não lê, não vai ao teatro. A única coisa que ele lê são os rótulos de uíque. A  única música que escuta são umas "rapadas e hip-hopadas" que ele generosamente emite da aparelhagem do automóvel para toda a cidade. Os tipos da cultura são, no entender do matreco nacional, uns desgraçados que nunca ficarão ricos. O segredo é o seguinte: o jet-setista nem precisa de estudar. Nem de ter Curriculum Vitae. Para quê? Ele não vai concorrer, os concursos é que vão ter com ele. E para abrir portas basta-lhe o nome. O nome da família, entenda-se.
Carros - O matreco nacional fica maluquinho com viaturas de luxo. É quase uma   tara sexual, uma espécie de droga legalmente autorizada. O carro não é para o nosso jet-setista um instrumento, um objecto. É uma divindade, um meio de afirmação. Se pudesse o matreco levava o automóvel para a cama. E, de facto, o sonho mais erótico do nosso jet-setista não é com uma Mercedes. É, com um Mercedes.

Fatos - Têm de ser de Itália. Para não correr o risco do investimento ser em vão, aconselha-se a usar o casaco com os rótulos de fora, não vá a origem da roupa passar despercebida. Um lencinho pode espreitar do bolso, a sugerir que outras coisas podem de lá sair. 

Simplicidade - A simplicidade é um pecado mortal para a nossa matrecagem. Sobretudo, se se é filho de gente grande. Nesse caso, deve-se gastar à larga e mostrar que isso de país pobre é para os outros. Porque eles (os meninos de boas famílias) exibem mais ostentação que os filhos dos verdadeiros ricos dos países verdadeiramente ricos. Afinal, ficamos independentes para quê?

Óculos escuros - Essenciais, haja ou não haja claridade. O style - ou em português, o estilo - assim o exige. Devem ser usados em casa, no cinema,  enfim, em tudo o que não bate o sol directo. O matreco deve dar a entender que há uma luz especial que lhe vem de dentro da cabeça. Essa a razão do chapéu, mesmo na maior obscuridade.

Telemóvel - Ui, ui, ui! O celular ou telemóvel já faz parte do braço do matreco, é a sua mais superior extremidade inferior. A marca, o modelo, as luzinhas que acendem, os brilhantes, tudo isso conta. Mas importa, sobretudo, que o toque do  celular seja audível a mais de 200 metros. Quem disse que o jet-setista não tem relação com a música clássica? Volume no máximo, pelo aparelho passam os mais cultos trechos: Fur Elise de Beethoven, a Rapsódia Húngara de Franz Liszt, o Danúbio Azul de Strauss. No entanto, a melodia mais adequada para  as  condições higiénicas de Maputo é o Voo do Moscardo. Última sugestão: nunca desligue o telemóvel! O que em outro lugar é uma prova de boa educação pode, em Moçambique, ser interpretado como um sinal de fraqueza. Em Conselho de Ministros, na confissão da Igreja, no funeral do avô: mostre que nada é mais importante que as suas inadiáveis comunicações. Você é que é o centro do universo! 

Nota do Editor: Os nossos agradecimentos à Manuela Ribeiro que enviou gentilmente este texto.



publicado por jambros às 01:27
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Segunda-feira, 11 de Dezembro de 2006
João Rosa morreu às mãos da PIDE-DGS?

 

Foto da firma NOSOCO

disponibilizado por Mário Silva. João da Silva Rosa: quarto a contar da direita.

 

No início do mês de Janeiro de 1961, o estado de saúde de João da Silva Rosa (arguido preso na PIDE-DGS) agravou-se consideravelmente. Foi observado por um médico a 3 de Janeiro de 1961, o qual emitiu o seguinte parecer: “sou de opinião que deve baixar Hospital para efeitos de tratamento que não pode ser feito na prisão, além de que a sua doença tem que ser acompanhada, na sua evolução, pelo médico”.

 

Porém, mesmo com agravamento do estado seu estado de saúde de João da Silva Rosa ,o inspector da PIDE-DGS de Bissau não providenciou o seu internamento como recomendou, de resto, o parecer médico. Assim, datado de Janeiro do mesmo ano, este escreveu ao inspector da PIDE de Bissau uma carta (certamente a última em vida), na qual dizía:

 

“Forçado pelas circunstâncias, resolvi fazer-lhe estas linhas que V. Ex.ª saberá desculpar-me a ousadia e o tempo que lhe vou roubar. Há mais de 45 dias que os meus pés se incharam para depois baixarem até ao normal. E, de repente, começaram novamente a incharem e agora estão tomando proporções verdadeiramente alarmantes, pois o inchaço subiu até às pernas!

 

Passo noites horríveis, com insónias e abalos no coração provocados por tensão arterial muito elevada, originando a asma cardíaca que abala-me o corpo e canso-me ao menor esforço. Se este estado de coisas se prolongar por mais tempo, o meu estado de saúde passará de pior a péssimo e de grave a alarmante.

 

Consequentemente, rogo a V. Ex.ª a minha hospitalização urgente ou a liberdade sob caução, a fim de ser tratado pelo sindicato onde tenho médicos e medicamentos. Esperando que V. Ex.ª, atendendo o seu alto espírito de compreensão e de justiça, encontre solução para este problema tão grave como urgente, para o que deixo aqui expresso o meu profundo agradecimento e a expressão bem sincera do meu maior respeito.

 

Humildemente

 

Ass. João Rosa"

 

Porém, a 4 de Abril de 1961, recaiu sobre a carta de João da Silva Rosa o seguinte despacho do inspector: “O Sr. delegado de Saúde que se pronuncie sobre o estado de doença do arguido”. É então que é autorizado ao doente a prisão hospitalar fora dos calabouços da PIDE-DGS, mas num momento em que se encontrva já muito debilitado, vindo a falecer pouco tempo depois, em data que não logramos apurar, mas que muito provavelmente ocorreu entre os meses de Abril e Maio do mesmo ano.

 

Curiosamente, com uma longevidade surpreendente (45 anos depois), o nome de João Rosa é amiúde evocado na sociedade guineense. É caso para dizermos que a mística por que lutou e pereceu é a matéria-prima de que são feitas as grandes páginas da história guineense e das suas grandes figuras. Por outras palavras, elas também são as asas asas sobre as quais ainda voam os sonhos mais belos de um devir promissor.

 

Leopoldo Amado.

 



publicado por jambros às 17:45
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Morreu Joseph Ki-Zerbo (1922-2006)

 

 

 Joseph Ki-Zerbo e Leopoldo Amado, 2003 - Praça de São Pedro - Santa Sé

Por: Leopoldo Amado

Morreu Joseph Ki-Zerbo, inquestionavelmente, uma grande perda para o continente africano. Do meu lado – e creio que da maior parte dos estudiosos de África –, Ki-Zerbo era uma figura respeitada e respeitável, não somente pelo seu invejável percurso profissional e político, mas igualmente pela sua personalidade humilde e a sua permanente postura de combate: combates pela História de África; combates pela dignificação do mister político; combates pela melhoria do nível de vida das populações africanas; combates pela utilização racional e sustentado dos recursos naturais e, ultimamente – como pude pessoalmente constatar –, combates por uma ordem nova que permitiria que África acertasse o passo com a evolução da humanidade.

 

Porém, quis o acaso e a sorte que eu tivesse tido o privilégio de conhecer este homem em circunstâncias muito particulares. Com efeito, quando concluímos o livro “O Meu Testemunho, Guiné-Bissau e Cabo Verde – Uma Luta, um Partido, Dois Países, Editorial Noticias, 2003”, eu e Aristides Pereira cogitamos demoradamente em alguém que pudéssemos convidar para prefaciar a obra. Após quase um mês de hesitações, e quando ainda equacionávamos os perfis de várias personalidades e académicos, Aristides Pereira acedeu de imediato à minha proposta que recaiu em Ki-Zerbo, na medida em que era já um conhecido seu e, inquestionavelmente, um historiador africano de referência, para além de militante fervoroso e fundador (na década de 50 em Dakar) do Movimento de Libertação Nacional, tendo na década de 60 permanecido em Conakry por algum tempo, numa altura em que esta cidade era o epicentro das acções políticas de variadíssimos movimentos de libertação, desde o PAIGC ao MPLA e ao UPC (Union des Populations du Cameroun), este último dirigido na época por Félix Moumié.

 

Assim, por intermédio do deligente Pedro Godinho Gomes, que se encontrava na altura em Burkina Faso, estabelecemos imediatamente contacto com Ki-Zerbo, a quem formulamos o convite a que anuiu prontatamente, pedindo-nos, curiosamente, que não preocupássemos com o facto de a obra estar escrita em português, pois aprendera minimamente a lidar com esta língua nos seus contactos com arquivos e bibliografia portuguesas. Todavia, ainda lamentou não nos poder receber de imediato em Ouagadougou, pois iria para a Itália, onde seria homenageado numa cerimónia pública organizada pela Universidade de Pádua, para além de uma série de outras conferências que aprazou com várias universidades em Roma, nomeadamente a Pontifícia do Vaticano. Todavia, passado mais ou menos duas semana da data em que lhe remetemos por DHL uma cópia do trabalho, Ki-Zerbo enviou-nos um e-mail com o titilo “SOS” em que dizia que “não obstante entender o essencial, havia aspectos cruciais que gostaria de apreciar connosco”, propondo, para esse fim, que se aproveitasse a sua estada em Roma e se estabelecesse um plano de trabalho de mais ou menos cinco dias.

 

Estabelecido o programa de trabalhos e aprazado o encontro, viajei de Lisboa para Roma nos finais de Outono de 2003. Nessa cidade, após ter telefonado ao seu contacto (Monsenhor Charles Niamba), este confirmou-me um primeiro encontro de cortesia com Ki-Zerbo na Praça de São Pedro, no Vaticano. Quando ali cheguei, havia milhares de peregrinos de toda a proveniência, inclusivamente de África, pelo que comecei a pensar que muito provavelmente não encontraria Ki-Zerbo, logo eu que não tinha a mínima ideia de como ele era, apesar de conhecer e apreciar muito a sua obra. Assim, após ter deambulado sem sucesso por entre os peregrinos, na tentativa de o desencantar entre a multidão, quedei-me desiludido, a espera que algum milagre acontecesse. E aconteceu: Ki-Zerbo e a esposa (Madame Aicha, se bem me lembro do nome), vieram até perto de mim e, num português que só pecava pelo acentuado sotoque francês com que foi pronunciado, disse-me: “Bom dia”. Após as efusivas apresentações e cumprimentos, Ki-Zerbo confessou-me de que era um católico inveterado e grande admirador de João Paulo II, pedindo-me que passássemos doravante a encontrar ali antes de trabalharmos e que assistíssemos, naquele momento, a homilia do Papa, que começaria pouco depois. Seguidamente, caminhamos à pé para um convento feminino, situado na circunvizinhança do Vaticano, onde Ki-Zerbo e a mulher tinham sido alojados pela Universidade Pontifícia de Roma e, no qual, passamos em revista o programa de trabalhos e realizamos, nos dias seguintes, todas as sessões previstas.

 

Efectivamente, eu e o Ki-Zerbo encontrávamos religiosamente todos os dias de manhãna Praça de São Pedro, no Vaticano, onde  aprendi, aliás, a observar paciente e discretamente os seus gestos e atitudes quando se entregava às meditações e preces, antes de nos ancorarmos às pacientes e prolongadas sessões de trabalho que fazia questão de conduzir de forma humilde mas professoral. Na realidade, Ki-Zerbo tinha imensas notas manuscritas nas margens das páginas do trabalho que enviáramos, as quais fez questão de comentar com redobrada sapiência e cuidada contextualização históricas, de resto, aspectos que em mim reconfirmaram a ideia inicial com que viajei para Roma, isto é, de que ia encontrar-me em pessoa com uma das melhores cabeças pensantes de África, em suma, um sábio e um verdadeiro detentor do sentido da História africana.

 

Admirou-me, outrossim, a jovialidade de Ki-Zerbo que, não obstante a sua avançada idade (na altura, era já um octogenário), nunca se cansava de transmitir estímulos às novas gerações no sentido de alguma se fazer para inverter o actual caótico cenário em que se encontra mergulhado a África. Falava lenta e compassadamente, mas contagiava tudo e todos com as suas sonantes gargalhadas e o seu aguçado sentido critico e de humor. Lembro-me com saudade de um memorável jantar que me convidou a fim de selarmos a amizade e comemorarmos o final dos trabalhos. Aí, para além da Madame Aicha, tomou igualmente parte o reverendo Niamba (seu compatriota e prelado-estudante no Vaticano), onde, bem disposto e num ambiente descontraído, ele se revelou em toda a extensão do termo: apreciou um bom prato, fez jus ao Baco, riu a bom rir, brincou, ridicularizou os jogos políticos no seu país (na altura, ele era deputado), deu lições de sapiência como só ele sabe fazer, falou de tudo um pouco e, no final, despediu-se de mim com um efusivo abraço, levando de seguida a mão direita ao coração, em sinal de amizade.

 

Foi a última vez que vi Ki-Zerbo em pessoa, apesar de desde aí até pelo menos há um ano e meio termos mantido regular correspondência. Com a sua morte, vale a pena aqui recordar que ele foi autor de uma obra de referência sobre o continente africano, Histoire de l"Afrique Noire (Paris, Hatier, 1972). Foi também o primeiro negro a tornar-se professor agregado de História na Sorbonne, na década de 50, e um dos primeiros a refutar academicamente a tese de que a África Negra não tinha cultura nem história. Natural de Toma, no então Alto Volta, fez os estudos liceais em Bamako,  no Mali, onde ganhou uma bolsa de estudo para a Universidade de Paris. No final dos anos 50, regressou à África Negra e instalou-se em Dacar, onde criou o Movimento de Libertação Nacional, uma estrutura fundamental na dinamização dos movimentos  independentistas dos países da África Ocidental. Exilado durante longos anos, voltou ao Burkina Fasso em 1993 e fundou, no ano seguinte, o Partido para a Democracia e o Progresso. membro da Internacional Socialista. Pertenceu ainda ao Conselho Executivo da UNESCO e foi deputado à Assembleia Nacional. Para Quando África? a longa entrevista que concedeu a René Holenstein, foi publicada em Portugal pela Campo das Letras, em Março deste ano.

 

Os nossos pêsames à família enlutada e paz à alma de Joseph Ki-Zerbo!

 

 

 

 



publicado por jambros às 16:32
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José Carlos Schwarz, elementos escolhidos

Norberto Tavares de Carvalho, «O Cote»

     Genebra, 6 de Dezembro de 2006

 

  

                              José Carlos Schwarz e Miriam Makeba

Existem pelo menos duas possibilidades de localização do período aproximativo da chegada à Guiné do avô paterno do José Carlos Schwarz. A primeira estaria ligada à cronologia presencial de famílias de origem alemã que se instalaram no nosso país. O Arquivo Histórico Ultramarino, por exemplo, situa a chegada da família Schacht (Otto Schacht), no século XIX ou seja nos anos 1800. A instalação na Guiné Portuguesa, do avô do José Carlos poderia também se situar mais ou menos nesse período. A segunda hipótese estaria relacionada com o fim da primeira Guerra Mundial (1914-1918), que na Alemanha levou a ruína, a fome e a doença. Muitos cidadãos resolveram abandonar esse país. Poderia ser neste segundo contingente que um tal Schwarz desembarcou na Guiné. Mas é possível ainda que existam outros cenários … Naquela época, sendo Bolama a capital, era aí que se concentrava a maior parte da camada estrangeira. Instalado na Guiné, o exilado alemão teve pelo menos um filho a quem deu o nome de Carlos Schwarz. Este, por sua vez, viria a constituir família. O José Carlos nasceu em Bissau num dia como hoje : 6 de Dezembro de 1949, da união do Senhor Carlos Schwartz e da Dona Fidjinha (Nha Fidjinha), de origem caboverdeana… Eis, em suma, o essencial que pode compulsar na preparação deste pequeno memorial dedicado ao aniversário natalício do saudoso José Carlos.

 

Logo que o seu filho atingiu a idade, o Senhor Carlos Schwarz, tratou de o pôr na escola. Assim, o José Carlos fez os seus “ (…) estudos primários na sua terra e secundários em Dakar, Mindelo e Lisboa (…)”[1]. Segundo um seu próximo conhecido, José Carlos interessou-se cedo pela leitura. A revista « Readers Digest » era distribuída em Bissau, e pensa-se que foi aí que o jovem urbano deu os seus primeiros passos na literatura. Chegou também a se inspirar do magazine brasileiro Ele e Ela , uma revista de tipo Play Boy  que divulgava certas tendências do género masculino e feminino.

 

Em meados dos anos 60, «Tony»   Schwarz, irmão mais velho de José Carlos, instalou-se em Dakar, no Senegal. Ali, José Carlos viveu um certo período (1965-1967 ?), sob os seus cuidados. O «Tony» estaria empregado na Perissac, Oficina Peugeot. Teria inscrito o seu irmãozinho no curso de francês da Aliança Francesa (ou numa escola similar). O «Tony» Schwarz teria em Dakar uma posição social relativamente estável e cedo o José Carlos ver-se-ia a provar as alegrias das noites quentes da capital senegalesa. Nas discotecas, a salsa cubana estava em voga e Laba Sosseh era o seu mais fiel porta-voz.

 

Dakar, a sua sociedade, a sua cultura, e as suas múltiplas perspectivas – ali bem pertinho de Bissau –, era uma outra realidade, um outro universo, uma metrópole africana, que não escapara à atenção do jovem prodígio. De regresso a Bissau, José Carlos não resistiria em frequentar as festas no Cupelom de Baixo, organizadas por um certo Benjamin de Almeida, comerciante (djila) que fazia o seu negócio entre Bissau e Dakar e que era conhecido próximo do «Tony » Schwarz. Esse Benjamin seria originário de Geba, possuindo também ascendência wolof. Indivíduo selecto, ele distinguia-se pelo seu fato aberto, sem gravata, e pelo seu chapéu de palha. No meio da festa, Benjamin mandava «abrir o campo» para deixar o jovem salseiro exibir os seus dotes. Então, José Carlos, ao ritmo das músicas afro-cubanas, com aprumo, e com sapatos de couro de «bicos compridos», tomava lugar no meio da sala com «entre-pernas» e «reviravoltas», dando um verdadeiro espectáculo com intermináveis aplausos à mistura. Nos dias seguintes, nas ruas da Santa Luzia, onde morava com os seus pais, era de novo um verdadeiro cavaleiro que se via no dorso do  “Gaúcho”, seu cavalo, com uma corja de crianças seguindo-o. É aí que nasceria o primeiro mito do “José Cabalo”.

 

Mais tarde, um encontro fortuito ou o retomar de uma velha amizade, viria a ligar o José Carlos ao Duco Castro Fernandes. O irmão deste, o Zeca, do mesmo apelido, considerado na época um bom guitarrista, dava noites musicais de gala no Chez Toi , um dos primeiros Night Club  de Bissau. Duco aprende com o irmão os segredos da viola e transmite-os ao seu fiel companheiro que se aplica na técnica da utilização do instrumento com uma relevada paixão. Este exercício daria nascimento ao grupo recreativo “Roda Livre” e ao conjunto musical “Sweet Fanda”. Mas a vida não eras só a alegria dos momentos de confraternização ou o carinho que brota de um lar familiar. Com a idade, novos desafios se lhe defrontaram.

 

Em 1968, o brigadeiro António Sebastião Ribeiro de Spínola foi destacado para a Guiné como novo Governador, substituindo no cargo o Senhor Arnaldo Sshultz. Aquele, sem perda de tempo, lança mão a então politica da “Guiné melhor “ à volta da Acção Nacional Popular. Na altura, alguns emigrantes guineenses residentes no Senegal, reunidos à volta da FLING (Frente de Libertação Nacional da Guiné), estabeleceram contactos pontuais com o então Governo Colonial. Naquele tempo, as cabeças pensantes mais conhecidas em Dakar eram Benjamin Pinto Bull, Jonas Fernandes, François Cancola, entre outros. O « Tony » Schwarz, que nunca escondera a sua hostilidade relativamente ao PAIGC e pelo seu então líder, Amílcar Cabral, assim como a sua aversão pela projectada união entre a Guiné e Cabo-Verde. (Neste particular, é preciso abrir parênteses para sublinhar que não se trata aqui de um juízo de valor da nossa parte, na medida em que certamente «Tony» tinha argumentos para tal, embora mantivesse uma certa discrição à volta dos debates políticos da altura, pois teria exercido com as suas convicções políticas uma certa influência sobre o seu irmão cadete. Porém, não se trata aqui duma afirmação categórica …

 

Entretanto, também regressa à Bissau o Everimundo José da Silva, filho do «Nhu Musante», do bairro de Chão do Papel. Jovem instruído, este fugira de Bissau, indo-se reunir aos combatentes do PAIGC em Conakry. Daí teria beneficiado de uma bolsa de estudos para um dos países do então Leste (Bulgária, Alemanha ?). Algum tempo depois, teria abandonado os estudos, passando à RFA (República Federal da Alemanha). Sem a autorização de estadia na RFA, e vivendo numa perfeita clandestinidade, Everimundo teria sido alvo de controlo policial numa discoteca e recambiado depois para Portugal, onde foi entregue à PIDE-DGS. A organização secreta do então Governo colonial tê-lo-ia metido na prisão, onde, depois de interrogado e torturado, seria de novo recambiado para a Guiné. Em Bissau, Everimundo foi imediatamente integrado na Acção Nacional Popular. Todavia, não se sabe exactamente quando e nem onde ele e o José Carlos Schwarz travaram conhecimento. Mais adiante, poderão perceber a razão porque o caso do Everimundo José da Silva é evocado nestas linhas.

 

Por volta de 1969, cerca de um ano depois da chegada à Guiné do governador António de Spínola, um grupo de deputados da Acção Nacional Popular (ANP) parte para uma visita a Portugal, no quadro da “Guiné Melhor “. O governo colonial português, na sua propaganda antinacionalista, deu uma grande cobertura a visita. No filme realizado, na região de Lisboa, podia ver-se o José Carlos Schwartz no meio da delegação da ANP, na Fábrica de Explosivos e Munições de Braço de Prata, mais exactamente, em Trafaria. Paradoxalmente, graças a essa visita, o jovem de vinte anos na altura viria a ser confrontado as suas próprias responsabilidades no contexto político-colonial. Este exercício identitário, inteira e profundamente pessoal e de foro interno, deveu-se ao seu encontro, em Lisboa, com certo Filinto de Barros, «De Gaulle» que teria recebido os primeiros ensinamentos do nacionalismo africano, com exemplos da particularidade guineense, o que não constitui segredo, por ser do conhecimento geral, tanto mais que o seu interlocutor, na altura estudante em Lisboa, conseguira convencer José Carlos de que o seu papel não era ao lado do poder colonial. Dito de outro modo, o encontro de Lisboa, com o Filinto de Barros, constituiria o despertar de consciência do jovem pequeno burguês.

 

Todavia, quando o filme da visita a Portugal foi difundido na Guiné, no programa « Por uma Guiné Melhor », um dos actores do filme já não era o mesmo. O feitiço virara feiticeiro. O Everimundo José da Silva, porém, não teve a mesma chance. Foi precipitadamente executado logo depois do 25 de Abril de 1974. Oficialmente, o PAIGC ainda se encontrava em Conakry e nas regiões libertadas, mas a sua ponta-de-lança já operava em Bissau…

 

De « Readers-Digest » e « Ele e Ela », o jovem prodígio passou a interessar-se por outros géneros de literatura. Em Bissau, a PIDE-DGS controlava de uma certa maneira a circulação de revistas subversivas. A Vida Mundial, que dava valiosas informações de política internacional, não fazia parte da restrição. José Carlos fez dela a sua nova leitura de cabeceira.

 

Depois do Duco Castro Fernandes e do Filinto de Barros, um terceiro encontro, também decisivo, iria marcar uma nova reviravolta na evolução política e cultural do jovem rebelde, afinando ainda mais a sua definitiva opção. Seu nome: Aliu Barry. À priori músico tradicional, Aliu evoluíra do seu lado, entre os dois cupeluns. Era também um exímio guitarrista, o que lhe valeu a merecida fama de soberbo ritmista. Rapidamente, uma grande amizade nasceria e reuniria os dois, os quais viria a estar na base da fundação de um dos primeiros conjuntos modernos da música crioula guineense: o  Cobiana Jazz . Este, instalar-se-ia na cena musical guineense fazendo leal concorrência à Juventude 71 que se implantara sobretudo no meio estudantil (de passagem, uma homenagem ao saudoso César Augusto Lopes, ex-lead vocal do grupo, que morreu em Lisboa há alguns meses atrás). Naquela época, Ernesto Dabó evoluía nos Náuticos, enquanto Sidónio Pais Quaresma, “Sido”, preparava-se para encapotar as suas Capas Negras (uma outra homenagem ao Daniel Cassamá, segundo líder vocal do grupo, também desaparecido prematuramente em Bissau). Eis os conjuntos que constituíam as mais ambiciosas perspectivas musicais daquele glorioso período juvenil.

 

Cobiana Jazz, entretanto, propagava na sociedade guineense uma mensagem que ia directamente ao encontro das massas populares, conquistando assim uma boa parte da juventude urbana que passou a ter a possibilidade de pensar e de agir a partir da definição de uma nova base contextual. O fenómeno « Cobiana Jazz » releva também o que Amílcar Cabral postulava à propósito das revoluções, a saber, que só a pequena burguesia tinha a capacidade de as conduzir. Quanto a tese de Cabral relativo ao “suicídio” desta classe após a revolução, isso já pertence a um outro capítulo…

 

Sociologicamente falando, José Carlos Schwarz era o único elemento da pseudo-burguesia, presente no grupo. Esta constatação que de forma alguma retira outros valores do grupo é simplesmente uma questão de referência ideológica, cuja evolução, como disse mais atrás, pode ser discutível. Com o Cobiana Jazz , José Carlos Shwarz, Aliu Barry e as suas retaguardas musicais, entram de rompão no conflito colonial, mudando forçosa e radicalmente uma parte dos peões avançados pelo Spínola, que constituíam, em grande parte, os alicerces da nova política colonial de alienação e submissão da juventude e das massas.

 

Confiantes nas suas acções mobilizadoras, os dois líderes resolvem participar, de maneira frontal, nas actividades da «Zona Zero», a principal antena do PAIGC em Bissau, dirigida por Rafael Barbosa. No auge das suas actividades contra o governo colonial, José Carlos e Aliu Barry decidiram colocar uma bomba na própria delegação da PIDE-DGS em Bissau. Partiram de motorizada que deixaram disfarçada nos arredores, atravessaram o portão principal e foram colocar o engenho na porta envidraçada de grelhas, do lado de dentro. Tratava-se de um potente explosivo de comando à relógio. Uma bomba-relógio ! Seguiu-se depois uma violenta explosão que fez voar em pedaços as grelhas e os vidros da porta da PIDE-DGS. Assim, José Carlos e Aliu tinham ousado desafiar o inimigo numa das suas mais seguras fortalezas. Desde então, a fama do Cobiana Jazz percorrera praticamente toda a Guiné. José Carlos, que fora entretanto chamado à tropa, bem como o Aliu Barry, viu-se afectado como condutor de camião no Fá Mandinga onde os comandos africanos recebiam preparação. Poucos meses depois, seria ele convocado à Bissau onde recebeu ordem de prisão da PIDE-DGS. Aliu Barry teve também a mesma sorte.

 

Deportados para a colónia penal da ilha das Galinhas, Aliu cumpriu aí a sua sentença : de dois anos. José Carlos só passou três meses na ilha, tendo sido retornado ao pavilhão de isolamento da segunda esquadra em Bissau, para aí concluir o resto da sua pena, fixada então em três anos. Esta dupla sanção dever-se-ia aos seus presumidos contactos com a população da ilha das Galinhas ou ao facto de, entretanto, a PIDE-DGS ter descoberto outros casos em que estaria implicado. José Carlos, por seu turno, defendia a segunda hipótese. Mas o afecto que dedicava aos bijagós que constituíam a população da ilha das Galinhas era eloquente. Aliás, chegou a reivindicar essa paixão com a sua famosa canção “Djiu di Galinha” [2].

 

Ora, conheci de perto o José Carlos justamente na altura em que a PIDE-DGS o transferiu da ilha das Galinhas para Bissau, pois em Novembro de 1972, na sequência de uma greve de estudantes, precedida de manifestação ao Palácio do Governo, em que tinha sido detido por esta polícia política, por ordem do general Spínola. Ocupei momentaneamente a cela n.º 12 do Pavilhão de isolamento. O José Carlos encontrava-se na cela n.º 16, a última do corredor. Quando lhe expliquei que fazia parte de um grupo de estudantes que fora reivindicar um tratamento mais condigno no plano dos estudos, entusiasmou-se tanto que pronunciou a frase : “É o segundo Pindjiquiti !  “. Fui libertado algumas horas mais tarde em troca duma advertência pronunciada pelo Inspector-adjunto da PIDE-DGS, o Senhor Fragoso Alas, que assim procedeu porque não tinha matéria suficiente para me prender. O seu sermão asseverava que “não é porque o vizinho quer aumentar o seu terreno que vai  estendê-lo sobre as margens do outro vizinho”. Confesso que até hoje ainda não percebi o sentido desta frase.

 

Todavia, a sentença viria a recair sobre mim em Maio de 1973. Quando me empurraram para a cela n.º 6 e fecharam a porta, senti umas batidas na parede e lembrei-me logo da técnica e respondi batendo da mesma forma. Uma voz vinda do fundo do corredor inquiriu: – Quem é? Foi assim que soube que era a voz de José Carlos Schwarz, que se encontrava na mesma cela havia seis meses! Estivemos juntos, eu na minha cela e ele na sua, durante cerca de quatro meses. Falamos de tudo e … de nada. Fiquei desiludido ao saber que, afinal, havia traição na « Zona Zêro ». Das nossas conversas, lembro-me de o ter contado uma cena que o divertia imenso, pois relacionava-se com uma peregrinação que minha mãe fez à Fátima, em Portugal, cerca de um mês antes de eu ter sido preso. A história, que o divertia imenso, e que amiúde pedia que a contasse novamente, reportava-se ao facto de a minha mãe ter sido abordada em Lisboa por uns estudantes com os quais me encontrava ligado. À cabeça do grupo estava o seu neto, de seu nome, João Nelson Sá Nogueira, “Nuno Quipa”, na altura, estudante em Geologia, os quais disfarçaram na bagagem dela uma série de livros e revistas “subversivas”. Quando a minha mãe regressou à Bissau, chamou-me e ordenou-me que abrisse a sua mala. Peguei nos livros e, enquanto ela vociferava que não me queria ver-me metido naquelas relações, já tinha ido para o quarto maravilhar-me com A Mãe, de Máximo Gorki, O Diário do ‘Che’ na Bolívia …, Portugal e o Futuro, de Spínola, etc., etc. Mas o que o José Carlos parecia preferir e me pedia para lhe repetir vezes sem conta, era uma história bastante engraçada ligada à uma menina que denunciara aos meus pais o pedido de namoro que a fiz, o que me tinha envergonhado sobremaneira porque tratava-se de uma prima. Cada vez que contava este episódio, ele ria-se como se fosse a primeira vez que ouvia a história. A vergonha, diria ele mais tarde numa das suas intervenções – fazendo referência a um alto dirigente do PAIGC –, é pior do que a morte! Mas isso nada tem que ver com a minha banal história.

 

Foi José Carlos, com efeito, quem me iniciou nas regras do Pavilhão. Fiquei surpreendido ao saber que a PIDE-DGS colocara em toda a extensão do corredor, um sistema de escuta que permitia controlar as conversas dos prisioneiros através duma central. Para evitar eventuais salamaleques, cada prisioneiro tinha um nome de código ou era identificado por um assobio. O José Carlos era destro no exercício. O seu nome de código era “Djiu “ e mais tarde “ Sidi”. A mim, baptizou-me “N’barrim” (irmãozinho no dialecto mandinga). Havia “Belankufa”, “Canhuto”, “Zarra” e variadíssimos outros que se competiam no Pavilhão.

 

“Djiu” defendia a tese de que antes de ir para a luta armada ou de efectuar acções de guerrilha urbana, os jovens deveriam antes passar pela prisão da PIDE-DGS, provar o castigo, a vida dura, etc. Nesse sentido, ele próprio preferia que o retornassem à ilha das Galinhas ao invés lugar de ser posto em liberdade. Para ele, castigo era algo de pedagógico que contribuía para a maturidade. Perdido nos seus argumentos, postulava para mim a necessidade de sua deportação para a ilha das Galinhas, o que naturalmente me dava cabo dos nervos, recusando-me sistematicamente a prosseguir conversa nesse sentido. Fértil em ideias, instaurou no Pavilhão uma escala hierárquica que consistia em dispensar o merecido respeito aos condenados de três anos, depois aos dos dois anos, de um ano, meses, etc. Assim, o recém-chegado era básico na pirâmide. Ele era “comandante”, pois tinha a pena mais elevada (3 anos) assim como o Biéne Na Bion, um guerrilheiro que conhecera na ilha das Galinhas, que tinha sido posto em liberdade meses antes, mas que fora de novo capturado pelo exército português e, desta vez, condenado a três anos de prisão. José Carlos não parava de criticar o guerrilheiro, acusando-o de negligência e de falta de rigor em relação a isto e aqueloutro. Dizia-lhe assim: – desta vez vão matar-te.

 

Mas, um dia, quando o seu colega “comandante “ apareceu no corredor com as nádegas completamente inchadas de tanta palmatória levada, depois de um intenso interrogatório, lá estava o “Djiu”, em primeira linha, a consolar e a animar o combatente. Meses mais tarde, quando lhe comuniquei que eu ia ser deportado por três anos de trabalhos forçados na Colónia Penal, disse-me: – Agora sim, temos a mesma patente!   Eu que nunca levara aquilo a sério, comecei a me interrogar se o tempo que passara no isolamento não o teria afectado o juízo, pois fiquei com o sentimento de que na sua frase de despedida ele tinha posto muita convicção.

 

José Carlos era o “condomínio” do Pavilhão. Conseguira a autorização de ser o último a ir tomar banho e fazer a toilette  e, o que apreciava muito, passar pano pelo corredor e limpar a casa de banho. Deixavam-no sozinho a “passear” cerca de 15 minutos no corredor, tempo suficiente para falar com outros prisioneiros e oferecer frutas e outras guloseimas que recebia de casa. Durante esse período, tive o grande privilégio de ser um dos primeiros “padrinhos” das belas e salientes canções que José Carlos compôs durante o cativeiro: Minino de criaçon , Muscuta, Quê qui minino na tchôra , Djénabu ,  N’djanga e toda a série que se lhes seguiu. Realizávamos até sessões de discos pedidos  que eu animava e ele cantava.

 

Um dia, os guardas vieram buscar-me e fui transferido para a cela n.º 7, do outro lado do Pavilhão. Devíamos estar nos meses de Setembro ou Outubro de 1973. (A margem de erro é plausível.) Conduziram-me no pátio do Pavilhão onde me fizeram esperar alguns minutos. A cerca de pelo menos três metros do lugar onde me encontrava, jazia um corpo quase inerte em cujas narinas se notavam ainda vestígios de sangue coagulado. Fiquei estupefacto. Mas tive tempo de notar que o indivíduo aí estendido, de tez negra e de tronco nu, era dotado de uma certa corpulência, cor relativamente esbranquiçada e aparentando um evidente cansaço. Da minha nova cela, transmiti imediatamente a imagem que gravara na mente. Ninguém conseguiu identificar de imediato o prisioneiro. Alguns dias depois, o “Belankufa” (Duarte Cabral) anunciava ao Pavilhão a morte do … Domingos Badinca, um dos responsáveis da rede clandestina do PAIGC de Bolama.

 

José Carlos, antes de ser preso, fascinara-se com a leitura de “Os condenados da terra”, de Franz Fanon, que circulava no meio da camada intelectual daquele tempo em Bissau, como sejam os casos de Jorge Ampa Cumelerbo, Fernando Delfim da Silva, ”Djumbo”, Adalberto (o seu apelido escapa-me), Idrissa Djalló, etc. Teria sido o Mumini Embaló quem ofereceu um exemplar da obra de Franz Fanon ao José Carlos. A figura principal da investida do escritor antilhês contra o racismo e a miséria inspirou o nome do Naman, seu primeiro filho da união com a Teresa Loff Fernandes, que conheceu em Lisboa. De origem cabo-verdiana, nascida no Senegal, esta era também de descendência alemã. Alegre e simpática, a mulher do José Carlos tomava parte activa nas actividades clandestinas da “Zona Zero”.

 

Fã incontestável do Kanté Manfila, José Carlos admirava a proeza técnica do congolês Franco, bem como as fecundas melodias do Balla e dos seus “Balladins” e a excelência do Kélétigui Traoré, que tinha a magnificência de combinar nos seus arranjos musicais o moderno e o tradicional.

 

Em Bissau, José Carlos Schwarz foi posto em liberdade logo depois do 25 de Abril e, acto contínuo, convidado a pronunciar um discurso radiodifundido. Antes de ser preso, fizera este sermão: “Juro-vos que, por mais que o pau permaneça no mar, nunca se transforma em crocodilo!”, o que traduzido em linguagem comum significa que tarde ou cedo assistir-se-ia ao fim da opressão colonial [3]. E aí estava ele de novo, numa comunhão perfeita com o seu “público”, a confirmar a sua ousada profecia.

 

Da ilha das Galinhas, ouvi o discurso que iniciou, dizendo: “Irmãos!”, numa voz tenra e carregada de emoção. O feiticeiro transformara-se em profeta.

 

Três anos antes do emblemático 25 de Abril, mais precisamente na madrugada do dia 3 de Julho de 1971, uma figura mística sucumbia em Paris. Também nascera em Dezembro, tinha apenas 27 anos e a sua voz, como a do José Carlos, provinha do Zodíaco. Mas esta já é uma outra história...

 

Enfim, existem dores neste mundo, que nem o tempo consegue cicatrizar.

NOTAS:

[1] - José Carlos, LP Djiu di Galinha, (com dedicatória de Miriam Makeba), 5.11.1978

 

[2] - José Carlos, LP Djiu di Galinha.

 

[3] - José Carlos Schwartz e o Cobiana Jazz, faixa “N’djurmenta bós!”

 

NOTA DO EDITOR:

José Carlos Schwarz nasceu em 1950. Era poeta e músico e, inquestionavelmente, considerado o pioneiro da moderna música guineense. Em 1960, escreveu uma série de poemas em francês e português e, no início dos anos 70, fundou, com um grupo de amigos o agrupamento musical Cobiana Djazz, um dos percursores da música moderna do país. Nesse grupo, a maior parte das músicas foram compassadas por José Carlos Schwarz. Estas privilegiavam sobretudo temáticas como o amor, a mulher, as crianças e o sofrimento. Muitas delas eram também canções de criticas veladas ao injusto sistema colonial e, naturalmente, de exaltação patriótica, em que sub-repticiamente apoiava os ideais da independência por que lutava o PAIGC. 

 

Conheci-o, se bem me lembro, antes do 25 de Abril (1971/1972?). Estávamos sentados (eu e o Jeremias Pereira, vulgo “Tony Bumbero") defronte ao Liceu Honório Barreto, quando apareceu uma pessoa que envergava balalaica verde e farta barba, abordando-nos quase  em segredo, ao mesmo tempo que perguntava se sabíamos que os “tugas” eram colonialistas e que era necessário fazer-lhes regressar à sua terra. Não me lembro qual foi a minha resposta (nem a do Jeremias), mas tenho presente que foi a primeira vez que ouvi falar disso (uma dívida eterna!), não podendo, todavia, garantir o mesmo em relação ao Jeremias, na medida em que foi quem me alertou de que o desconhecido que havia falado connosco era o famoso e mítico José Carlos Schwarz, do Cobiana Djazz.

 

Na fase pós-independência, José Carlos ocupou as funções de director do Departamento de Arte e Cultura e de subcomissário para a Juventude, Desporto e Recriação. Porém, nem isso fez refrear a sua inquietação pelo bem público. É então que produziu as músicas mais caústicas e acutilantes de critica social contra o establishment, a exemplo de “Apili”, “Si bú sta diante na luta” ou ainda "Saliu ku Lamara"”, Borgonha más morte Kalá (“Si garandi di cassa ta tchami e fidjus tudo ta nornori”) ou “Púbis na tchora pena” (inédito), entre outras. Esses temas, tão belos quão profundos, mesmo do ponto de vista do seu conteúdo, afiguram-se, cumulativamente, como o melhor testemunho das desilusões de um povo que depositara no advento da independência altíssimas expectativas, mas que cedo foi forçado a acordar de uma espécie de idílio colectivo em que se deixou embalar.  De tal forma as suas canções eram incómodas que, segundo se diz, resolveu-se nos bastidores do poder afasta-lo temporariamente da cena política, nomeando-o Encarregado de Assuntos da Embaixada da Guiné-Bissau  em Cuba, onde viria a falecer, aliás, na aurora da vida, com apenas 27 anos, na sequência de um acidente aéreo ocorrido a 27 de Maio de 1997 no aeroporto de Havana.

 

Na realidade, antes da sua morte, José Carlos era já um mito vivo. Com o seu desaparecimento físico, transformou-se rápida e indistintamente num misto de herói e mártir. Não só porque a ele deveu-se a modelação da música moderna guineense, em que revelou os rasgos de génio criador de que era portador; nem apenas porque coube-lhe a proeza de ter desafiado como poucos as autoridades coloniais (esteve preso pela PIDE-DGS entre Maio de 1972 e Abril de 1974), mas porque a longevidade das suas verdades chocavam e ainda chocam com a mundividência hipócrita dos que, agindo em sentido contrário, apresentavam as suas “virtudes” como únicas, absolutas e inquestionáveis, a ponto de infelizmente se contar às centenas, os compatriotas trucidados e milhares de outros obliterados, tudo em nome de paradigmas que, anos depois, paradoxalmente, os próprios se encarregaram de fazer passar à História. Feliz ou infelizmente, José Carlos já não teve tempo de assistir a tudo isso …

Leopoldo Amado

 



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